sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Menino levado

A casa era pequena, a comida, pouca. Dividia a cama com três irmãos. O único colchão, polvilhado de ácaros, atravessava o quarto para que todos coubessem ali, amontoados, todas as noites. A mãe era doméstica, casou aos 14. Naquele tempo, dizia a avó, não podiam se dar ao deleite das vizinhas tagarelarem. Ficar para titia era, por lei popular, escárnio para a família. A sorte fora que ninguém chegou a descobrir a gravidez antes do “sim”. Depois do altar, cada qual em seu caminho. Sem vizinhos. Sem perspectiva.

Vivenciava o drama de duas casas. O assédio do marido vagabundo da patroa durante o dia, à noite, os arroxeados pelo corpo se intensificavam – pela truculência do marido ébrio. Os cabelos brancos eram sanados aos fins de semana, quando tinha um bico no salão da esquina. Pé, mão, cabelo. A beleza tingida da sociedade moderna. Da futilidade instantânea.

A falta de instrução não impedira os devaneios de dias melhores. Alucinava sempre antes de dormir, propagando os ideais de vida para os filhos. Que absorviam a ilimitada quimera semeada pela genitora. Sonhavam acordados. Ideavam. E assim cresciam, na ilusória fatalidade de que teriam um futuro. Porvir.

A mesa farta, inúmeros desenhos animavam as tardes trancafiados não mais na creche, mas em casa. Era o desejo do mais velho, ter o bem estar que vislumbrava em capas de revistas que não tinha condições de comprar. Perdeu as contas de quantas vezes fora tocado da banca do armazém. Não podia ler. E o dono do estabelecimento não o deixava ao menos observar as fotografias de grandes riquezas. Do mundo que não era seu.

O do meio ansiava saúde. Desejava imensamente se igualar aos meninos rechonchudos que viviam no centro da cidade. Ser obeso na infância, acreditava, era sinal de bem estar. Comer bem, sem ter de permanecer dias instalados no sinaleiro da cidade, ansiando que alguém lhe atirasse alguns miúdos ao chão.

Sobrara o mirradinho. Fruto da desnutrição molesta. Sonhava em ver a mãe rainha. Achatar as brigas no ralo da pia e ligar a torneira sem temer esgotar a água. Queria tratamento para o mau cheiro que saía do banheiro de casa. Pudera, mal sabia o que era esgoto. Extenuava a pouca fadiga que tinha para manter a saúde. Mental. Não significava, mas compreendia. Era o seu mundo. Foi então que tivera uma grande ideia.

Pegaria alguns trocados do pai. As moedas tilintavam nos bolsos surrados da calça. Carecia de pegar mais roupas do albergue, as doações sempre eram fartas. “Pessoas boas” - pensava. “Nos oferecem o que vestir sem cobrar por isso”. Era um menino levado, não hesitava em aflorar as ideias. Não temia a irregularidade da imaginação – ponte principal para arcar, sozinho, com as próprias brincadeiras. A diversão consigo era sempre garantida.

A miséria da família teria fim, desejou. O pai, na vã inocência infantil, usava um perfume exótico. Com cheiro forte, ele dizia. Roncava igual um porco, esperando a proximidade do fim. Os vinténs estariam seguros com ele. Correu até o quintal, jogando na pequena cova os pequenos níqueis que pegara emprestado – “depois devolvo, e ainda vai sobrar” – era a verdade que acreditava construir. Marcou o local com um x, feito de gravetos recolhidos do quintal. Aguou. Certamente a árvore de dinheiro não tardaria a brotar.

Os problemas de casa haviam terminado, de forma tão simples. “Porque ninguém pensou nisso antes?”, mais fácil que pegar emprestado dos outros sem avisar. Adormeceu.

No meio da noite, com a boca seca, o inditoso do pai levantara. Percebendo não haver mais com o que aniquilar a sede, concluiu: “mulher vagabunda, pensa que vai me roubar”. O primeiro gesto foi chutá-la, na altura do estômago. O grunhido não acordou os filhos, certificara-se disso. E as agressões não ultimaram até que os pulmões não mais inflassem.

No mundo dos pequenos, agora viviam com outros garotos de mesma idade. Não entendia muito bem aquela nova casa, mas a vida era melhor. Tinham cama, roupa e atenção. Zombava das mulheres vestidas de preto, e com elas aprenderam a ter algo que desconheciam até então: fé. O menor pensava sempre na mãe, e nunca mais sentira o cheiro forte do perfume do pai. Algumas mulheres vinham vê-lo, tratando-o como se fosse gerado no próprio ventre. Mas nunca saíra dali.

O mais velho vira o sonho realizado. O do meio, contente pelos remédios que tomava quando adoecia e pelo alimento que o fortificara. Às vezes o mais novo era levado até um campo, que continha o nome da mãe escrito na pedra que decorava a vala. Pena ainda não conseguir identificar as letras. Diziam que ela fora deixada ali. Então sorria, maravilhado, ao ver as flores que nasciam ao redor da lápide. “É linda igual as flores”, repetia todas as vezes que lhe pediam para descrevê-la. Recebia em resposta um “Ela está em um lugar melhor agora”. E bastava. Seu desejo fora atendido. “Quero vê-la logo”, ansiava.

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