segunda-feira, 31 de outubro de 2011

"Deus parece às vezes se esquecer"

Era aquela coisa, eu queria me enturmar. Queria mesmo. Não sei onde vi aconchego naqueles olhos castanhos, emoldurados por cílios fartos. Não sei. Eu queria é... Conversar. Mesmo que eu fosse uma pessoa do silêncio. Abria a boca. E comia, porque haveria de comer. Porque minha mãe dizia que era necessário se alimentar.

Sentava-me torta. Longe. E sempre pensei que por trás de tanto cílio tinha uma pessoa legal. Um “oi, tudo bem?”, alguma conversa e um riso nervoso. Era absolutamente normal. E me sentia invisível. Era? Não sei. Eu só queria conversar. Em poucas tentativas frustradas – e como essa coragem apareceu não sei dizer – mais frustração se acumulava.

Daquele tipo que não se espera nada... E ao mesmo tempo tudo se espera. Eu não sei! Será que não me enxerga? Oi? Preciso acenar, levar um tropeção ou o quê? Só um diálogo. É que ultimamente tá difícil ter amigos que valham à pena, sabe. E eu sou do tipo que reconheço as pessoas pelo olho. E eu acho que você é bom. Digo, do bem. E é bom também. Mesmo que eu não te conheça.

Já tinha desistido, a solidão e o silêncio são bons... Pra mim são pares perfeitos, mesmo sem saber. A única coisa que se encaixa... Nessa vida meio medíocre. Meio mediana. Meio a meio, sabe? Aí fui andar pra lá, por outros ares e outros prédios. E reconheci teu passo à frente. E antes de entrar pela porta aberta, hesitou. Olhou pra trás, esboçou um sorriso. Eu só olhava para o meu all star. Sabe quando a gente sente, mesmo sem olhar, e sabe? É agora eu sei. Hesitei. Olhei para frente, mas já havia entrado... Será que sairia?

Só pra conversar?

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Eu morro e não vejo tudo

Aguardava pacientemente a carona para ir embora. Sol alto. Tarde aleatória durante a semana... Praticamente qualquer. O barulho ensurdecedor do trânsito até tentava tirar o foco, não fosse uma moto roncar a poucos metros de distância dali. O salto fino, rosa choque, desceu da garupa – 15 centímetros. Apoiou bem ao chão, certificando-se que sairia dali como a diva que era.

O capacete combinava com a motocicleta e o xadrez em amarelo do lado. Viera de moto-táxi. Tirou aquela redoma da cabeça soltando os longos cabelos louros até a cintura. Lisos, propaganda de xampu. Os olhos pintados com uma maquiagem em evidência, a roupa apertada evidenciando as curvas. Sobrancelhas marcadas, cílios enormes. As mulheres ao redor cochichavam. A inveja parecia corroer cada centímetro do corpo de todo sexo feminino presente.

Senti o tal sentimento alfinetar-me, sem reação, observei. Os olhares furtivos dos marmanjos não conseguiam ser discretos. Aquele olhar que a gente decifra sem precisar de alguma descrição barata. Que mal podia cogitar o que se passava pela cabeça dos fulanos – e nem queria. O salto foi tilintando em 1,80 de altura até a porta principal. Subiu as poucas escadas com uma performance digna dessas cantoras de pop que pipocam por aí. Unhas compridas, alaranjada. Perua, Barbie, como preferir.

Aproveitei a proximidade com o recinto adentrado, apurei os ouvidos. Luana. No estilo Piovani, só podia. Minha carona chegou. E os cochichos ainda sondavam a moça. O que ela tinha que as outras não tinham?

Debruçou na bancada do comercial e ditou em alto e bom tom, com um timbre amaciado:
- Escreve aí: Luana Travesti, 23 anos...

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Corre dor

Faltavam cinco itens da lista de compras e eu aguardava pacientemente na fila do açougue – dia de carne em promoção, sabe como é. Olhei de soslaio para os demais corredores, tudo estava calmo. Pela primeira vez via um supermercado calmo, com o locutor de 15 em 15 minutos bradando alguma oferta do dia. Aquela música de fundo. Rádio de supermercado é uma coisa brega, né? Uma vez ouvi dizer que isso fazia com que as pessoas ficassem mais tempo em um lugar e comprassem mais. Se dava certo ou não, eu não tinha doses suficientes de publicidade e propaganda no sangue para responder.

Começou a tocar aquela nova, do rapper que minha prima costumava idolatrar. Lil Wayne e Jay Sean – e viva o Google! – o refrão era “down down down”, e no corredor 11, de biscoitos, poderia dizer que começava um flash mob dance de uma só pessoa. Um garoto arriscava alguns passos ali, sozinho, entre bolacha passatempo e bolacha de champagne. Devia ter uns 10 anos. E dançava como ninguém – engraçado – e inovava os passos à medida que a música ficava mais agitada. A fila não andava, a senhora de cabelos brancos reclamava do preço da coxa de frango. As carnes embaladas em bandeja de isopor amarela nos observavam atentamente. Nunca acreditei muito naquele vermelho vivo das carnes embaladas. Vendiam uma imagem do que não eram: eu sabia que não eram tão saborosas quanto os açougueiros ansiavam que fossem.

Vender era preciso. Por que será que não criavam um grupo para se apresentar ali? Imagina só, show de dança, lingüiça e carne de frango. Língua de boi, coraçãozinho. Música ao vivo. Um espetáculo a parte e nenhum cliente reclamando, todos felizes cantarolando “macarena” em coro. Com direito a frangos sem cabeça incorporando a coreografia com uma desenvoltura sobrenatural. Igual aquele menino do corredor 11. Eram passos ensaiados, era a única hipótese. Um moonwalk desengonçado e uns três minutos de fila estagnada. Até que fazia sentido, sabe? Aquela frase maluca que instigava as pessoas a dançarem como se não fossem vistas. Ainda mais hoje. Não estou brincando, juro. Eu bem que poderia fazer igual àquela maluca do seriado Modern Family e pegar a gravação dos corredores de supermercados para provar que era verdade.

Que a felicidade não era inventada.

domingo, 23 de outubro de 2011

Café com leite

Daqui alguns anos me vejo realizada. Plena. Feliz. Não mais cautelosa. Não mais amedrontada por qualquer apontamento de dedo alheio. O amadurecimento ou o distanciamento faz isso com a mente: faz bem. Bem pra pele, bem pro sorriso, bem pro corpo. Pr’alma.

Talvez eu tenha montado aquele cafezinho aconchegante. Baseado no que eu vi uma vez em Cianorte, um misto de café, livros e legião urbana tocando ao fundo. Encontro de casais, fotos antigas grudadas na parede. Fotos minhas. Momentos meus. Compartilhados. Porque é a felicidade que me acontece. É o que tudo caminhava para ser: serei. O que sou. Uma lapidação melhor e maior do que hoje é incompleto.

E você vai entrar por aquela porta. Vai me cumprimentar com um aceno de cabeça, um sorriso de lado, o mesmo olhar perdido e apaixonado. E eu nunca saberei pelo quê. Pedirei para que te atendam como realmente merece. E você virá acompanhado do teu sossego, da sua falta de pretensão. Eu virarei as costas para anotar o pedido e darei o melhor sorriso que tenho guardado no peito. Que é só seu.

A porta vai se abrir, a campainha vai tocar avisando que mais alguém entrou. Junto de novo cliente, uma cortina de vento gelado, porque o clima aqui ainda não mudou: continua maluco. Às vezes quente que não me cabe o calor, e me falta o ar, a visão e o bom senso. Outras, bem frequentes, vêm acompanhadas com o que combina bem com o céu: marrom, bem gelado.

Podia ser um cappuccino. Podia ser um café tradicional. Um carioca, macchiato. Aprendi esses dias a fazer latte art. E desenhei, como uma criança que brinca com uma caixa de lápis de cor 24 cores da faber castel. E brinca escondida porque não pode brincar na frente dos outros: as aulas ainda nem começaram. Fiz um coração. Tímido, como eu era naquela época. Como ainda guardo um pouco de mim no que restou. No fundo da xícara. Daquele calor que acabou.

Faço questão de levar à mesa. Você agradece, empunha um jornal e começa a ler. Não perdeu o costume. O legião urbana ainda toca. Você levanta. Paga, despede-se e vai embora. Como se fôssemos meros conhecidos. De uma eternidade de lembranças que não conseguimos esfriar. Do café que ainda nos une ao acaso. Do tempo.

sábado, 8 de outubro de 2011

Chuva, Adele e lembranças

Abriu a carteira. “Hoje pode deixar que eu pago”. O que há de errado nisso? Pensei no tempo se fechando lá fora. E de tudo que já tinha fechado aqui dentro. Olhei atentamente à carteira e reconheci aquela foto, lembrei daquele dia. Oito reais que registraram um momento... Já faz tanto tempo assim? Eu disse daquela vez que eu pagava. Mas quem realmente pagou por todos aqueles erros?

Olha aqui, reconhece? Hoje você substitui essa pessoa. Você veio para preencher o vazio que até então se encontrava, e permanece... Na lembrança? Grudado na carteira. Feche a conta pra gente, por favor. E não deixe essa carteira aberta por tanto tempo. Sabe? As portas algumas vezes se fecham, outras vezes nós a tacamos na cara de quem merece. Lacramos o cômodo. Sabe o que acontece com uma casa limpa? Se fecharmos e não deixarmos ninguém entrar, ela se suja... Sozinha. De novo. E aí precisamos de nova foto, de novos personagens... De instinto. Incômodo.

Me vê um café. É sábado à tarde e há tanto pra conversar... Você poderia estar sentado nessa cadeira, sabe? O que houve com todos aqueles planos? Descansam em paz... Eu espero que você encontre um lugar melhor aí desse lado. Porque você sabe... Não está mais entre nós. Mas faz falta. E dói. Por que você se foi? Porque lacrou a porta pra um mundo que não pertence a ninguém? Hoje você deixou de existir. Mas está lá grudado... Na memória, na carteira, na contracapa da agenda. Seu rosto desfigurado ainda permanece pra dizer que por um mísero segundo foi de verdade. E então morreu.

Porque a gente morre para renascer... E nem sempre do mesmo lado. Nem sempre na mesma vida.