quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Um estranho receio

Estávamos em bando, sentados na cantina da faculdade já vazia. A temperatura caía com rapidez, o céu mostrava o vento carregando as nuvens para longe. Amarrei os cabelos para que não caíssem aos olhos, tomei minha blusa, assim como meus amigos e partimos para um dos blocos.
Adentramos em um deles, cuja cor perdera espaço para a escuridão que engolia sorrateiramente o que estivesse à frente. Conforme os passos ecoavam no corredor gélido, cochichávamos a respeito das conversas anteriores. De quem é que foi a ideia de contar histórias de terror? Amedrontados e orgulhosos demais para assumir o medo, seguimos encorajados pelos assovios das portas – que anunciavam a chegada de uma tempestade.
- Para onde vamos agora? – perguntei em tom de desespero.
- Se é que sei, para bem longe de todo o mal – arriscou Antonio, que ficava cada vez mais pálido.
O soar dos calçados em contato com o piso produzia um som cada vez mais alto, quase sobrepondo nossa conversa a procura de um bem estar momentâneo. Fantasmas, mortos-vivos, intrusos... Todos sabiam muito bem qual era o assunto que predominava o pensamento coletivo.
Foi quando, sem perceber, uma das meninas do grupo afastou-se.
- Vou ao banheiro, gente, realmente preciso!
Ficamos um pouco afastados, perto da rampa que nos levaria ao andar debaixo, esperando pelo retorno de Wanda. Estávamos andando há muito tempo, horas talvez, quando avistamos um bebedouro do outro lado daquele imenso corredor – atravessamos com a preocupação em permanecer no campo de visão da menina, que não tardaria a chegar.
Com as histórias deixadas de lado, já ríamos de qualquer besteira, fazíamos piadas sobre tudo, Carlos já mencionava o futebol. Foi quando, de toda aquela atmosfera densa, emergiu um grito. O escândalo, o desespero, o que deveria ter acontecido? Claro que estávamos sós naquele prédio de luzes já apagadas.
- COOOOOOOOORRE! – gritou Wan.
Automaticamente atiramo-nos sem rumo, adentrando a primeira sala que estava em nosso campo de visão. Fechando com força, Hiten permaneceu atrás da estrutura de madeira para ter certeza da segurança do grupo. Encarei todos com os olhos arregalados, engoli grosso e perguntei,
- O que era?
- Um intruso – disse, por fim.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Parada obrigatória

Estava sentada, imersa em pensamentos distantes. Via as árvores correrem pela janela, escondendo-se do friozinho costumeiro de maio. Trajava uma jaqueta verde musgo, a primeira que vi no guarda-roupa. Mirradinha, mal dava conta do frio que eu esperava. Em meus braços, uma bolsa e uma blusa – não reserva, mas eu tinha que devolvê-la. Uma saída se os ventos resolvessem resfriar ainda mais minha maçã do rosto já rosada. Comparava em todos os anos, esse início do mês cinco com a chegada da exposição, aquele sol ameno, a empolgação dos que estavam buscando distrações na cidade que ainda dormia.
Sempre ouvi dizer que os grandes centros, patamares acima de minha cidade natal, não eram mais capazes de conseguir algumas horas de descanso, repouso. Não parava, não conseguia mais parar, afinal, tempo é dinheiro e a crise estava aí para provar a importância camuflada das verdinhas tão almejadas. Era uma terça-feira normal, com acontecimentos aparentemente normais e eu me dirigia à rádio, com a esperança de boas gargalhadas que as gravações sempre rendiam.
Era uma época tensa, parâmetros psicológicos, sentimentais, notas saindo. Tenso, muito tenso. Mas eu levava tranquilamente, afinal, eu tinha me esforçado não tinha? As recompensas para todo o meu esforço em algumas situações não foram de fato merecedoras ou dignas, mas foram, simplesmente – e quem era a menina de jaqueta verde para contrapor as regras e exceções do destino? Se eu afirmo que ele tem complô e não gosta de mim, sou uma pessimista. Se acreditar demais no poder da melhora breve, “para de ser otimista, menina!”. Isso era ou não era vida?
Tantas ideias inflando a capacidade de pensar daquela tarde, apostando com os Beatles que tocavam ao fundo, quem é que conseguiria chamar mais a atenção. E foi justamente que perderam o posto de atenção incidente para a criança defronte minha pessoa. Era certo, eu odiava aquele lugar no ônibus. Mas que diacho, para que fazer um assento de frente para o outro? Era constrangedor para quem tinha de fitar o rosto do desconhecido – se este era mudo ou deveras estranho. Ou então terrível para quem sentasse de costas para o motorista, e tivesse que encarar tantos olhos curiosos fitando-o.
Mas não aquela criança. Aquela definitivamente não se importava com o que pensavam. Devia ter quanto? Uns dez? Talvez onze, ou menos. Menina bonita, dos olhos de burca. Mas só consegui contemplá-los quando ela resolvera acordar do sono forjado para fugir da curiosidade alheia. Fuga, ou receio? Ela parecia pior que eu, que tentava analisar perfeitamente a situação. O sol melindroso fazia refletir seu cabelo encaracolado, o uniforme surrado, e a bolsa que um dia fora cor-de-rosa. Linda menina! Pareceu-me um anjinho. A pele morena, os lábios evidentes, as unhas pintadas de rosa. Criança ou mocinha? Ahhh, essa infância de hoje em dia, quem me vê falando assim crê em minha intensa idade de avó, mas as gerações mudaram, não vamos negar. E a infância que eu tive se perdeu, e por ser minha era a melhor – melhor refúgio, melhor lembrança, era pra lá que eu tinha imensa vontade de retornar, reviver os fatos.
Dos olhos novamente fechados da garotinha, brotaram lentamente lágrimas. Seria de frio? Seu rostinho contraiu-se em dor, em pânico. Mas ela não fez ruído – ou Lennon não deixou ouvir bem? Absolutamente, ela não fizera barulho algum. Mas a lágrima inocente que rolou pela bochecha macia da garota, fazendo curva no queixo agudo, mudou alguma coisa aqui dentro. Não questionava porque aquele anjo derramava aquele símbolo funesto, mas observava a expressão tão meiga transformar-se em um perfil adulto e crescido. Ah como eu detestava crescer antes da hora. Não digo desenvolver um cérebro descente, responsável ou pensante. Isso pelo contrário, eram boas qualidades que eu buscava cultivar. Mas nunca quis perder a identidade que cada idade trazia.
Levantei-me, puxei a campainha. O ponto estava próximo, as risadas também. Desci, e fiquei estática esperando o ônibus seguir seu rumo. Ela me fitou, com seus olhos escuros, seus olhos de burca embalados por enormes cílios. Levantei os óculos de sol, sorri. E para minha surpresa, ela sorriu de volta – e bastou. Era a pureza que me faltava, era a alegria que nos faltava.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

É também despedida

Desde o momento em que o avistou, com o olhar sobressaltado e o coração palpitando de alegria, não se conteve em arremessar-se no abraço que mais precisava nas últimas 48h. O fato descoberto na saída imprevista do final de semana somou-se a falsa esperança já acumulada, e que ela sabia bem: teria de sair dali o mais rápido que pudesse. Em uma fração de segundos a presença dele deu sentido à viagem totalmente fora de cogitação: estava em casa.
Procurando aliviar a saudade – oh, sentimento horrendo! – conversavam sobre tudo o que viesse em mente – só havia aquele momento para aproveitar a companhia mútua. Logo veio a apresentação tão esperada, a música de fundo e, finalmente, o jantar. Seguiram para a fila que se formava, aguardando o momento em que saciariam a fome, quando discretamente uma senhora postou-se logo atrás do garoto de cabelos louros. Incrivelmente mais baixa que ele, a mulher tinha uma pele translúcida, com a textura de papel de seda, dando a impressão de que rasgaria com facilidade. Cabelos cor de bronze e os olhos verdes que se assemelhavam à cor da garrafa de guaraná que cada mesa no recinto suportava.
Cuidadosamente analisava o casal à frente, visivelmente entretido com a letra de Tom Jobim. Cutucou o rapaz, dizendo:
- Vá mais pra lá, fique perto de sua namorada!
A garota de cabelos castanhos e pele tão branca quanto à folha de seda olhou para o suposto namorado. Os olhos dourados dos dois riam, e as risadas ecoaram pelo salão.
- Não, não. Ela é minha amiga! – explicou-se o lourinho de nariz avantajado.
- Meu irmão! – retrucou a branquela.
- Tão amigos, quase irmãos – concluiu com um ar de superioridade.
Desconcertada e levemente corada, a senhorinha não hesitou, comentando logo em seguida,
- Mas isso é muito bonito! Que amizade linda! Difícil ver coisas assim hoje em dia... – e se afastou envergonhada.
Preocupados com a janta, trataram de pegar o que agraciava o apetite e ocuparam seus lugares na mesa, junto com os outros amigos, relembrando e rindo do fato que tinham acabado de presenciar. No mais tardar daquela noite que marcava o início de uma longa semana, adentraram o automóvel e partiram rumo ao momento indesejado. Com o santana azul marinho estacionado frente ao condomínio onde ele morava, chegou a hora que a menina de bochechas rosadas não suportaria enfrentar: o adeus.
Doía, fragmentaria a alma, sabia bem. É uma das piores sensações que uma pessoa poderia ter. Abraçaram-se demoradamente, quando ele beijou-a ao rosto com ternura. Segurou-a pelo braço enquanto ela fitava o nada, procurando esconder o olhar transbordante. Tudo consequência daquela inviável situação.
- Eu estou te dando tchau! – disse áspero, talvez pela disfarçada indiferença dela.
Dilacerada, abaixou a cabeça. Foram poucas horas, mas o suficiente para confirmar o imenso carinho que sentiam um pelo outro. Sem conseguir encarar aqueles olhos tão severos, abraçou-o novamente sem dizer uma palavra. Observou o caminhar dele até a porta de entrada, até desaparecer.
Não queria um adeus, nem mesmo um até logo confortaria a pobre moça. Era notável o que realmente ansiava.
- Meu irmão!

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Múltipla escolha


O desafio do pensar impondo as condições de saúde mental. A sanidade esvaindo-se, as vozes entoando canções deliberadas em mente. O cansaço derrubando o corpo que ao chão jazia há algum tempo. Ideias construindo-se por códigos pautados nas vivências dos últimos dias.
Os nós que o cérebro dava em questão de segundos, diante das tentativas de justificar o que veio acontecendo no espaço de um mês de lá pra cá. Valores distorcidos, alterando os princípios de toda uma vida.
De fato, foi a maneira como aqueles personagens adentraram minha essência, revirando-a de cabeça para baixo. Sei que a confiança depositada tão rápido corresponderá à formação desse laço amistoso tão excêntrico e inconseqüente. E quem responderá pela insanidade presente nos passos é a mesma formuladora de questões. De um lado, a razão. Do outro, quem poderá dizer?

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Bolo e guaraná

Tomei-o em minhas mãos trêmulas, fitando aquela luz que dançava diante de meus olhos iluminando todos os pontinhos coloridos não só dos confeitos, mas também de toda uma vida. O dia ímpar por natureza dos fatos se tornava mais diverso a cada minuto que somava as vinte e quatro horas daquela data – e sei que muito me aguardava por todo aquele amanhecer, entardecer e anoitecer. Até que a madrugada caísse, eu já não seria a mesma.
Pensando se desejaria algo, avistei na penumbra vários rostos familiares – daqueles que realmente desejaram de todo o coração. Eu queria fazer um pedido assim, do fundo da minha alma, como se pelo fato de suplicá-lo ele se tornasse real. Sorri como teria sorrido aos meus quatro anos de idade, enquanto pedalava aquela bicicletinha cor-de-rosa. Vários outros flashes tomaram conta da situação, como se de repente eu fosse a principal espectadora de minha bagagem.
Risadas ecoavam, mutações aconteciam, e por mais rápido que tenha passado eu consegui vislumbrar todas as faces que se foram e as que permaneceram – todos me encorajavam a pensar em algo bom e assim apagar toda aquela chama de uma vida acesa. A cera derretia com o passar dos minutos e escorria sob os açúcares coloridos. Meus olhos marejados já não identificavam os vultos e as cores, era tudo um borrão.
Em um sobressalto sentei assustada, olhando para a parede escura. Algo cantarolava ao meu pé, fazendo com que eu me livrasse de todas as roupas jogadas por cima do criado-mudo, buscando algo que identificasse aquela movimentação. Consegui encontrar, por conta de um feixe de luz cantante, meu aparelho celular. Atendi sonolenta, e então percebi o sonho que tive – na verdade não o era só relances em mente de um bolinho enfeitado. A ficha caiu depois de desligar o telefone, foi o bastante para que eu compreendesse os meus dezoito anos alcançados.
Notei que ainda era madrugada e deitei novamente.
Fechei meus olhos como se fosse a última vez que o faria e assoprei a vela, desejando que tudo dali em diante fosse diferente.