sábado, 27 de março de 2010

Personagens de feira

Mudando de texto para imagem, que já ouvi dizer, "vale mais que mil palavras". Hoje me arrisquei no final da Feira do Produtor em busca de "personagens", "ícones" que por lá passam. Sempre tem aquele tiozinho tocando viola, o pedinte, aquelas figurinhas carimbadas, que todos conhecem.
A que ilustra o post de hoje é a simpática "ceguinha", como é conhecida por lá. Maria Aparecida deixou de ir à feira que acontecia na avenida Cerro Azul há alguns anos, e passou a frequentar os arredores do estádio Willie Davids, local onde acontece a feira que me refiro, de quarta e sábado.
Ao olhar cuidadoso do feirante Barrinha, Maria permanece sentada em um caixote vendendo panos de prato. "Lindeza", como é carinhosamente chamada pelo "pai postiço", Barrinha, compõem o quadro de diversidade do local.





No segundo ano do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, temos a matéria "Técnica de Reportagem", onde os alunos produzem o conteúdo do jornal on-line Matéria Prima (http://www.jornalmateriaprima.com.br/) - que aliás, começa a ter nossa contribuição na próxima semana.
Minha primeira missão na divisão de responsabilidades foi arcar com a "Reportagem B", juntamente com meu querido amigo Alisson Gusmão, que ficou com a "Reportagem A". Embarcamos na ideia de focar no tema feira, e provavelmente vocês vão conferir o trabalho pronto na próxima semana.
Fico pensando quando é que poderia me imaginar chegando em um lugar aleatório puxando conversa com desconhecidos - e surpreendendo-me ao me deparar com tantas histórias interessantes. Jornalismo é apaixonante. A história de vida das pessoas é apaixonante. Misturar-se com gente diferente do que estamos acostumados a conviver, pegar ônibus e parar em cantos da cidade até então desconhecidos é cansativo, mas é um aprendizado incalculável. Acho que estou apaixonada.

Obs: Quando questionada por mim se poderia caracterizar uma foto, tive como resposta um comovido "Claro, linda!". Incentivada pelos demais feirantes presentes, Maria Aparecida riu como criança, e perguntou, ao final, se a foto tinha ficado boa - é claro que sim! Não aguentei e trouxe um pano de prato para casa.

terça-feira, 23 de março de 2010

Combinação imperfeita

Resolvi que precisava levantar daquela cama. O clima estava totalmente convidativo a permanecer por lá o resto do dia. Chovendo, trovejando a todo instante, um vento assoviando na janela do quarto. O abajur deixava o ambiente mais aconchegante e eu já passara da página 100 de um romance qualquer. Suspirei, eu tinha de ir.
Abri a porta do guarda roupa sem vontade alguma, peguei uma toalha limpa e seca e rumei até o banheiro. Abri o box translúcido e liguei o chuveiro. A água saiu pelando, totalmente quente, o que formava um vapor que me sufocava. Girei meu corpo 180° para desenhar no vidro embaçado. Comecei a escrever aquela letra de música que não saía da minha cabeça desde o início da semana. Enrolei por mais uns dez minutos, até tomar coragem para sair e enfrentar o friozinho. Corri até o quarto e tornei a abrir o guarda roupa.
Não poderia ter escolhido nada mais inconsciente do que aquela roupa. Já pronta, virei para me encarar no espelho. O arroxeado das olheiras de noites mal dormidas se apossava da região abaixo do meu globo ocular. O cabelo um dia já sedoso e comprido se desfazia em um emaranhado de fios dourados e embaraçado. Amenizei a situação com um pouco de maquiagem – o segredo de toda mulher. Mais uma vez, agora sem levar um susto tão grande, fitei minha imagem menos deplorável no que dizia meu reflexo. Mas a roupa. Essa roupa, justo essa. Era a mesma combinação que eu usava no dia em que o conheci. Casual, nada chique, não era roupa de sair. Mas ela estava marcada por um longo período como a “roupa de fevereiro”. Pestanejei por um segundo, mas não tinha mais o que fazer a não ser afastar aquele pensamento da mente. Eu já estava atrasada. Impaciente pelo elevador tomei fôlego e desci correndo a escadaria daquele antigo prédio. Cheguei ao térreo e abri a porta com grande esforço – não era possível que eu estivesse tão fraca assim. Alguns dias sem comer e dormir direito, sinais nítidos de depressão. Eu via aquela mesma rotina arrastando-se em minha direção como uma gosma pegajosa que me faria mal, muito mal. Era venenosa. Olhei para a portaria, na esperança de que ninguém me visse daquela forma.
Ele olhou-me nos olhos daquela mesma maneira profunda. Os olhos negros, combinando com seu cabelo desgrenhado da mesma tonalidade. O nariz adunco e a mesma camisa preta, calçava o mesmo tênis sujo. Era tão desengonçado. Uma figura exótica, que só poderia chamar a minha atenção, de qualquer forma. Percebi que tinha parado de andar, não estava seguindo a rota que montei mentalmente de sair correndo dali. Nos encaramos por um período, sem saber o que dizer. Vou mudar o nome da minha combinação de roupa para “roupa do azar”, apesar de bonita, era a segunda vez que a usava, e nas duas ocasiões me deparei com ele. Engoli seco. E adivinhando o que eu tinha em mente, quebrou o silêncio constrangedor.
- Eu estava te esperando. – foi o que conseguiu dizer, com aquele seu tom descontraído, tentando esconder o nervosismo evidente.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Oh captain, my captain!

Ela era líder de torcida. Pareceram-me realmente aquelas cenas de filme americano, que a líder de torcida acaba ficando com alguém do time. Mas ela era diferente das outras, ela nunca se imaginou em tal posição. Nunca quis e não a interessava. Mas ela não conseguiu lugar contra as inclinações do destino. Estava ali, para quem quisesse ver: ela estava apaixonada pelo capitão do time do colégio. Sentia vergonha por não conseguir admitir para si mesma o que estava sentindo, mas é que, de certa forma, ele teve boa parcela de culpa.

De uns tempos pra cá eles sempre conversavam. Ele a ajudava com os deveres de casa, com as dificuldades que ela encontrava. Era um tipo de super-herói que ela nunca sonhou em conhecer. Será que todas as meninas ali do vestiário conheciam o melhor lado do ídolo delas? Era o comentário de todos os intervalos. Como ele era charmoso, como era estiloso, e como era... Cafajeste. Sim, uma por semana. Será que só faltava ela dali para completar o álbum de torcida de colegial que ele supostamente poderia ter?

Ela não conseguia acreditar que as intenções dele eram essas. Porque o capitão faria isso? Para gabar sua popularidade depois que conquistar todas dali? Mas era tão encantador. Não, não poderia ser. Todos estavam errados. Ele era diferente, e ela provaria isso.

E provou, com o passar dos dias, o quão doce poderia ser aquele garoto. Que movia montanhas para deixá-la contente. Que ligava para saber como estava. Que dava todo o apoio do mundo em suas escolhas. Ela estava entrando em um terreno que sabia bem, não teria volta sem seqüelas. Ele? Ele parecia corresponder às expectativas. Felicidade maior ela não encontraria, não se não fosse ao lado dele! Era o que mais queria, no final das contas.

Mas não contava com a persistência do melhor amigo em botar obstáculos nesse romance água com açúcar. Ele sempre a alertara de que bom moço ele nunca foi. Era um personagem, até conseguir o que queria.
- É tão difícil acreditar em mim? Ele vai te enrolar, acredita em mim.
- Comigo ele é diferente, de verdade. Não conheço o lado ruim dele.
- Você merece coisa melhor, você sabe disso.
- Eu não sei se quero acreditar que exista lado ruim. – finalizou ela.

Era um pouco de ciúmes sim. O amigo não o aprovava, tinha os motivos dele, que até onde sabia, não tinha nada a ver com a decisão dela. Ela nunca saberia se não arriscasse. Acordava pensando nele, dormia com o mesmo pensamento. Mas por sabe-se lá qual motivo, o alerta do amigo nunca lhe saía da mente também. Ela não jogaria uma amizade de cinco anos fora por um cara que conhece há algumas semanas, jogaria? Se ele estava dizendo, tinha fundamento. E ela resolveu brecar o desenrolar da história. Resolveu que o faro para situações erradas estava ativado, e bem dizia sua mãe, onde há fumaça, há fogo. Não tardou a descobrir alguma podridão do rapaz. Ele deveria temer muito o que aprontava, pois fazia tudo de caso pensado – e pior, escondido! Poderia ser quem quisesse ser, teria quem pudesse ter. Era um patife.

Provou mais ainda, do próprio erro, em aflorar a inocência por uma imagem construída intencionalmente. Tal qual lobo mau e chapeuzinho. Mas ela não seria vítima, não seria. Era tentada a continuar aquela história. O conflito emocional versus a razão que almejava prevalecer. De súbito, decidiu: não seria mais uma. A frustração seria grande por não completar o grupo de meninas de torcida. Mas ele também sabia que ela merecia coisa melhor. Sabia muitíssimo bem que não agira de forma humana. Que não prestava, era covarde, um oportunista. Era o tipo que toda garota sonhava, até que se prove o contrário. E quando se prova, ah meu amigo...

- É, você tinha razão.

sábado, 13 de março de 2010

Torta de maçã

Estava sentada em um café qualquer, tentando esquecer a vida que me aguardava lá fora, quando me deparei com um conflito entre um casal de amigos. Tinha tanta gente diferente naquele ambiente escuro, mas parece coisa do destino puxar a minha atenção pro canto inferior da lanchonete, logo ao lado do banheiro.

Eu conseguia ver o garoto de costas e o rosto da menina, sentada à frente dele, com uma caneca em mãos. O vapor embaçava a lente de seus óculos, e eu, mesmo sem enxergar a cor da íris da moça, conseguia perceber que o olhar era profundo e carregado de preocupação.

Levantei-me e sentei-me à mesa mais próxima aos dois. Eu realmente queria ouvir o que tinham a dizer um para o outro.
- Porque você é cabeça dura. – dizia ela, quase que em um sussurro.
- Como assim? – respondeu ele, com ar severo.
- Jeff, não adianta o que eu tenho para falar. O que seus amigos dizem. Você nunca nos dá ouvidos, sempre faz o que quer. Sempre vai fazer o que achar certo, porque para você, você sempre está certo.
- O que é que eu fiz agora, Andy?

Ela pousou docemente a caneca de café com leite sobre o tampo de madeira rústica que padronizava o ambiente. O final de tarde cinzento lá fora, ela passou a observar os poucos carros que atravaessavam aquela estrada deserta. Virou a cabeça envolta por uma touca xadrez, olhando firmemente para o semblante do rapaz.
- O que é que eu devo fazer, então? – insistiu.
- Só não se iluda. Já é um grande passo. – foi o máximo que conseguiu expressar antes de abaixar a cabeça.
- Eu não me iludi. Já falei. – martelava ele no assunto.

Andy, assim da forma carinhosa a qual ele a chamara, tomou em suas mãos novamente a caneca e passou a brincar com o resto de líquido que ali dentro se encontrava. Ficaram em um doloroso silêncio por alguns instantes, até que ela respirou fundo, e, quando eu me enchi de esperanças de que ela fosse dizer algo, desatou a chorar. Não um choro escandalizado, sabe? Mas eram visíveis as lágrimas apostando corrida por entre as curvas de seu rosto delicado.
- Eu não entendo vocês, homens. Primeiro você diz que ela é chata, metida. Desdenha a companhia dela. E agora sofre.
- Eu gostei de ficar com ela, só isso. Não estou errando. Ela foi diferente da pessoa que eu via, por cinco minutos, mas foi. Por cinco minutos ela foi bonitinha, não falou besteira. – tentava fundamentar.

Mais uma vez olhando o estacionamento do local, vendo o dia despedir-se, ela tomou coragem novamente para dizer o que achava que deveria dizer naquele momento.
- Eu só não quero que você se machuque, está bem? – por um minuto ela voltou a ser aquela menina doce do início do café, que conversava descontraída até mesmo com o moço do balcão.
- Como faço para não me machucar? – perguntou da maneira inocente que ele tinha como identidade.
Ela pensou por um instante. Removeu as luvas que protegiam as mãos do frio e passou a pegar o açúcar que estava caído ao redor do pires com a ponta dos dedos. Os resquícios do que já fora uma torta de maçã se encontrava ali naquele mesmo pratinho.
- O dia que eu descobrir, eu te aviso. – Foi o que conseguiu formular na hora. – Se eu sou chata e fico tentando te aconselhar, é porque só quero te ver bem.

Ele, visivelmente comovido com as palavras da amiga, passou a brincar com as luvas postas de lado, enquanto ela, ansiosa, aguardava por algum posicionamento dele. Nisso, dei-me conta de que meu café havia esfriado. Pausei para chamar a garçonete, pedi um pedaço de torta de maçã e mais um café. Acho que a conversa ali ia longe, e a minha curiosidade me impedia de sair àquele fragmento de hora.

Voltei minha atenção aos dois, que como uma pausa de filme, estavam intactos, um tentando descobrir a reação do outro.
- Eu não estou iludido. Não estou apaixonado, relaxa. Só queria vê-la mais uma vez.
- Jeff, você não existe. – disse incrédula.
- Porque não existo? Sou um babaca, não é? Mas não tem problema. – conformou-se.
- Não existe por ser diferente. Você não vê o quão é diferente dos outros?
- Eu sei que sou. Não queria ser. – queixou-se, por fim.
- Não se penalize por ser, não é um defeito. – e, bagunçando o cabelo escuro do menino, finalizou a conversa. – Só não quero te ver triste.

Os dois levantaram-se quase que instantaneamente. Ele ajudou-a a vestir o casaco, e foi pagar a conta. Ela aguardava do lado de fora, com um olhar distante, agora já sem vapor encobrindo as lentes dos óculos. Desajeitado, ainda tropeçou no próprio pé antes de sair do local. Abraçou o ombro da amiga e seguiram em direção ao carro. Adentraram o veículo e partiram em direção oposta ao olhar da garota durante a tarde.

Olhei para baixo, para minha torta e meu café, esfriando novamente. Pensei um pouco, se seguia meu caminho ou se esperava mais uma história que me fizesse pensar, que me tirasse um pouco a atenção. Olhei para o dia que já se despedira, as primeiras estrelas inaugurando aquele céu agora límpido. O mundo me aguardava do outro lado da porta. Levantei, ajeitei a boina no topo da cabeça, paguei por minhas distrações. Levantei a cabeça. Estava na hora de encarar a vida.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Noite em claro

- Ele é nosso amigo, Elisa, o que podemos fazer para tirar ele dessa? – ofegava Elton pela escadaria imunda, esmagando as latas estiradas pelo caminho. O barulho e o cheiro que exalava daquele estreito corredor era capaz de confundir a mente de qualquer um.
- E eu é que sei? Ele é nosso amigo sim, mas o sensato é deixá-lo sair dessa sozinho. Puxa o braço dele mais para cima fazendo o favor.
- Você tá bêbada garota, nem pra me ajudar...
- Ah cale a boca! Foi você que agitou, aguente as consequências agora.
- Consequencias de quais atos? Quem tá pagando por elas é o Paulo.
- Ele vai ficar bem. Confie em mim.
- É em mim que eu não confio, se quer saber. Não confio em mim, por insanamente confiar em você.
- Poupe-me das suas filosofias agora, e vamos tirar ele daqui. – Dizendo isso, Elisa chutou a última lata que se via pelo caminho, o estrondo espantou alguns ratos que se afugentavam por ali em busca de qualquer coisa que tapasse o buraco do estômago.

Carregaram o até então amigo pela entrada – ou saída? Partiram em retirada, correndo daquele porão, ou seja lá que ambiente teriam se aventurado. O que a monotonia fez poderia até causar sequelas que perseguiriam ambos pro resto de suas vidas – se aquilo ali não era o fim da estrada, de fato.
- E eu achando que era dia já! Que horas são Tom?
- Sei lá, madrugada talvez, perdi a noção do tempo. Tem cigarro?
- Tá me devendo dois maços já, mas pega aí – e atirou a caixinha pro amigo.
- Te pago de outra maneira depois, haha – e piscou.
- Não é hora de brincar seu otário, o que vamos fazer agora? Tá esfriando.. eu não posso voltar para casa, e não podemos levá-lo ao hospital.
- O cara tá dormindo velho, deixa ele descansar. Se não aguenta uma vida dessas, não tem porque se misturar com gente como nós.
- O que você quer dizer “como nós”? Até ontem poderíamos ser considerados os malas daquela sala! Os que nunca fazem nada! E agora insinua que somos os errados? Não cometemos crime nenhum, Elton!
- Ainda não, ainda não, Lisa. Tudo depende do que acontecer com o cara.
- Você mesmo disse que ele acordava! Idiota! – estressada, Elisa chutou em vão o ar, cambaleou e segurou-se em um poste. – Bosta! Tá vendo, tá vendo! Torci meu pé, caralho.
- E você disse pra confiar em você! Piada. Pense em alguma saída, em alguma coisa a ser feita! Não é o tempo, o senhor da razão?
- Vou te dizer quem é que está com a razão aqui, me ajuda, por favor?
Apoiando a menina em suas costas, fitou o céu repleto de estrelas, a lua minguante. Será que saberiam a mudança que aconteceria dali em diante?

quinta-feira, 4 de março de 2010

É meu.

Você já teve a sensação de reconhecer algo que lhe pertencia em outras mãos? É tão estranho, não é? A impressão que tenho é um filho que me foi arrancado e nem se deram ao luxo de mudar o nome. A minha identidade ali estampada. Ora essa, saiu de mim, não saiu? Cada texto, cada foto, cada detalhe que emana de mim, penso que me pertence.
Adoraria que na prática essa teoria funcionasse. Ela poderia se aplicar tão bem, em tantos contextos diversificados. Mas sei que não é bem assim que as engrenagens funcionam. E como agregamos valores, não é? Nascemos no zero, vamos aderindo o que nos convém – é disso que formamos opiniões que dizemos ser nossas. Apropriamo-nos de tantos dados alheios, formamos um perfil nosso e ainda lutamos por sua legalidade e exclusividade.

Certa vez, conversando com meu irmão, ele disse algo que eu realmente parei para pensar – não somente aquele dia, pois as palavras sempre brotam em minha mente. “A partir do momento em que escrevemos e divulgamos a nossa palavra, ela deixa de ser nossa”. Sabe, será que ele tem razão? Damos a cara à tapa, tiramos segredos da gaveta e mostramos para os demais que estamos aqui, que sentimos. Por vezes, expomos nossa criatividade, nossos deslizes, nosso verdadeiro perfil tão camuflado em palavras bonitas. E mesmo assim, estando abertos a críticas e elogios, nos deparamos com a brutal falta de consideração em ver palavras que saíram bem eu sei de onde, simplesmente por aí, sem nome e endereço, sem dono.

Apropriando-se da fala alheia. Imagino tantas vezes os ossos revirando nas tumbas dos nossos mestres da literatura brasileira, por, de modos tão diferentes terem o seu trabalho menosprezado. Terem seu tempo ali dedicado escarrado e sem identificação. Tenho pesadelos com textos em que os autores têm o nome trocado, a ideologia confundida. Composições plagiadas, descaradamente, copiadas sem o menor pudor.

A palavra é realmente nossa? Tudo que emana da nossa mente, de nossa boca, de nossas mãos, nos pertence? Ora, se eu pinto uma tela intencionando vendê-la, deixo de fazer arte pela arte e converto os valores artísticos em dotes consumistas, confere? Mas a tela continua sendo minha? Tem meu nome assinado ali em baixo, mas está sob o poder de outro dono agora. Continua fazendo parte de mim? Com o tempo – ah, ele de novo! – eu até posso esquecer as cores, o enquadramento fica em escala de cinza, eu esqueço o que fiz e em que gastei o dinheiro recebido pelo trabalho que me custou algumas horas pensando no que poderia fazer com as consequências da arte. Assim funcionam as palavras? Pensando por essa vertente, eu não escrevo por ganha-pão, embora seja um objetivo pessoal que pretendo alcançar. Dói mais ainda pensar dessa forma, porque podemos dizer, de fato, que elas me pertencem. Saíram do meu íntimo, naquele momento de clarão onde tudo faz sentido. Correram em minhas veias, atravessaram minhas pálpebras, estremeceram os meus dedos. Foram assassinadas. Trocadas por outras que foram mais coerentes. Surgiram e esvaíram-se tão depressa. Ah, as palavras eram minhas sim. E não fiz por dinheiro, por mérito, para desengavetar. Simplesmente fiz porque gosto, porque aprecio. Amo. Bem, tenho prazer em realizar um trabalho que me faz bem, o qual o único pagamento converte-se em elogios e críticas.

Aí questiono: meu irmão, você tem certeza que não mais me pertence? Nos pertence? Talvez meu posicionamento seja pra lá de egoísta e sem sentido. Talvez seja uma luta sem vitória prevista. Mas lhe digo, maninho, que uma mãe jamais esquecerá o filho que teve. A dor e delícia de criá-lo da maneira que o vê, o sente e o transforma. O mérito de educação jamais será posto em prova, mesmo que o sobrenome seja estilhaçado, mesmo que haja criações de má fé, mesmo que as réplicas indiquem o contrário. É meu, e vai continuar sendo.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Ídolo

Era início de noite, eu atravessava aquela rua de tantas recordações. O céu mesclando o azul com riscos brancos e amarelos de um dia excepcionalmente brilhante – e quente! Fitei meu all star, tão azul quanto o céu daquele encontro entre o dia e a noite. Sinal vermelho. Passei pela faixa de pedestres recordando aquela capa de cd tão conhecida, pelo subliminar e pela excelente composição e sucesso que os quatro ingleses alcançaram.
Observei meu reflexo desfigurado no vidro que cercava uma loja de móveis. Iam de verde para o amarelo, e então vermelho – uma sequência lógica para os motoristas que quase não transitavam a esse horário. Estranhei a calmaria. “Deve ser o final de semana”, pensei. Ainda vendo as cores brincarem com o tom do meu cabelo refletido, notei que dentro da loja escura havia cadeiras de madeira, sofás e quadros esperando pela venda. Um grande número mostarda avisava que era algum tipo de promoção. Os objetos já estavam imersos em breu para que eu fizesse uma análise mais detalhada.

Parei com os devaneios e rumei para a locadora, pensando qual seria o filme da vez. Eu poderia escolher uma comédia romântica, mas provavelmente não gostaria de ficar chorando pela utópica felicidade do casal. Talvez um drama, um suspense. Estava cansada de sessões de terror. Acabei optando por um musical, de qualquer forma, era só para passar o tempo. Voltei pelo mesmo caminho, mesmo reflexo, sinal verde amarelo vermelho, faixas capa de cd. Agora definitivamente anoitecera. Olhei para certo canto da esquina – outrora havia estagnado bem ali, o que eu chamaria de inspiração. Agora tudo era insanamente sombrio, as coisas pareciam estar no lugar, embora eu não reconhecesse mais minha idolatria de fã.

Ele ainda era meu ídolo, mas será que continuava isento de pecados?