quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Hora de dizer boa noite

Juntando os poucos cacos restantes que encobriam o chão de fragmentos translúcidos daquela substância que nada mais significava para mim. Poderia ser um copo de vodka, já sem o conteúdo prévio dentro. Poderia ser até mesmo meu coração estilhaçado pelo tempo, se o órgão não tivesse saído de férias.

Não procurei decifrar o enigma de cacos, os holofotes de minha atenção foram parar no canto obscuro do bar, onde a iluminação era porcamente estabelecida pelos reflexos das luzes que vinham do palco. Algum desafinado arriscava-se nos Beatles, mergulhado na melodia que provavelmente o tirara dessa dimensão. Ninguém mais se importava pela qualidade musical do ambiente, tortos do jeito que estavam. E justamente aquela figura me chamou tanto a atenção.

Chapéu encobrindo meio rosto, vestido com ar de mistério, um sobretudo surrado e uma dose de uísque nas mãos. Os dedos tremelicavam fortemente ao redor do copo levemente trincado, enquanto o olhar buscava alguma exclamação no ambiente sujo que frequentava. Entretida pela música e ansiando alguma movimentação do anônimo indecifrável, acompanhava o refrão “You’ll let me hold your hand, now let me hold your hand, I wanna hold your hand”, e me senti perfeitamente em uma cena distinta daqueles filmes meio faroestes, onde tudo acontece em bares.

Recém chegada na metrópole, queria conhecer ao menos um pouco do lugar onde passaria belo período da minha vida – se não ela inteira. Ouvi os vizinhos comentarem sobre aquela casa com jeito de abandonada próximo ao boteco da esquina. Se a música era boa ou não, aquela era a válvula de escape do meu sábado solitário e trancafiado em um quarto assistindo algum filme na televisão. Minha visão já estava levemente alterada pelos efeitos que o álcool produzira nos meus neurônios. A pouca iluminação borrava as sombras nas mesas de sinuca, implorando por canecas que o fizessem esquecer a semana que já tinha passado. Era um ritual de comemoração pelo que se via. E o indivíduo na penumbra não me parecia alguém com ar de satisfação pela semana que disse adeus, e sim alguém que buscava por mais uma semana entretido em alguma história digna de acompanhar, mesmo com as alterações provenientes do etanol na corrente sanguínea.

O indicador do homem rastreava o sinal trincado do copo ainda abordado pela dose envelhecida do líquido. Parecia-me um dos bem baratos, o uísque. Quando bateu frente ao declive do vidro no recipiente, emanou uma gota de tom escuro, um literal vermelho sangue, que descia embriagada até o mergulho de despedida. As hemácias desmanchando-se naquele amarelo ouro que tilintava e refletia as faíscas luminosas do outro lado do salão. Em um rápido movimento de braço, a sombra engoliu toda a mistura de uma só vez. Levantou o chapéu e pude analisar melhor o perfil da minha curiosidade, que no exato momento de decifração resolvera fitar-me com aqueles olhos fundos e o nariz levemente adunco. Não sabia dizer a altura, a cor dos cabelos ou mesmo da íris. Mas notei que a barba era um tanto pra lá do por fazer.

Levantou-se e caminhou em minha direção. Senti as mãos gelarem, os pés tamborilarem o assoalho riscado. Fitamo-nos por um instante. Acompanhamos um refrão de blues. Sabíamos.

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