quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

José Guidelli

Chinelo havaianas, camiseta do esposo. Vermelha. Short de elástico xadrez, daqueles bem surrados. Olhar perdido, cabelo preso num rabo de cavalo baixo. Unhas roídas, lembranças carcomidas pelo tempo. Virou de lado. Tênis, bermuda e camiseta. Boné de propaganda verde musgo. Desbotado. Cicatriz pelo rosto, talvez pelo peito. Mancha arroxeada na têmpora. Calor latente. 21h47. “Qual é o caixa rápido?”, bradou uma senhora desbocada. Vestido florido, camisola. “Que mercadinho mais furreba”, pisou duro. E foi-se, derrubando pilhas AA e deixando para trás um pote de uva passa.

Quem é que em sã consciência gosta de uva passa? No arroz? Inventam de por num bolo e chamar de panetone? Ah. Então é natal. Suspirou alto... José Guidelli tatuado no braço, com letras quase infantis. Carregava ao ombro uma cesta – não de natal. Básica. Contendo somente o necessário. “É só isso que vai levar?”.

- É... tá compricado.

- Pode passar na frente.

Olhei para os panetones amontoados. Diversas marcas. Gôndola de filmes a R$ 9,99, repletas de sacolas com frutas, a uva passa da senhora malinducada, barras de chocolate. De três fileiras, a do meio torta. Pop rock, Top Hits, Sessão da tarde. Tinha de tudo. Até descaso e abandono de compras por ali. Mas que bagunça!

A barriga saliente, o cabelo bronze e a mão acariciando o ventre. Agradecimento silencioso por ter dado a vez para o casal. Mão suja de graxa. Nariz escorrendo. Olhou para os apetrechos do caixa, papai Noel de chocolate. Pegou quatro. Fez uma conta mentalmente. Levava a cesta básica, um panetone e quatro estatuetas de cacau. Olhou para a barriga da esposa, que mesmo de camisetão mostrava-se presente. Pegou mais um papai Noel.

Mesmo que a criança nem veja a cor do chocolate. Era simbólico. Contou as moedas na carteira, voltou o ticket para o bolso de trás da bermuda jeans. José Guidelli abraçou a mulher e arrastaram as havaianas para a saída logo ao lado. Calor. Um senhor de chapéu brigando no caixa ao lado. Olhei para o carrinho. Para a porta já vazia.

Deixei o Bauducco de lado. Era preciso do que fosse... básico.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Ele um dia volta?

E eu nunca tive tanta certeza de que o futuro é lá fora. Que o anseio de pisar fora da linha argumenta bem com o medo de um passo em falso. Errôneo. Entre malabares e equilíbrio numa corda bamba, como quem não sabe sambar e tenta. Tenta a ponto de cansar os pés, dobrar os joelhos e clamar por... Por o quê mesmo? A vida é lá fora. No quintal de casa, na estrada que vai delineando o destino. Do rio que entrecorta e muda a paisagem. E eu nunca quis tanto. E quero. E instigo a um próximo passo. A andar em equilíbrio – ou simplesmente desequilibrar. É preciso, sabe? Fugir da rota. Andar além. E descobrir.

O que é que tem? É logo ali – avisou de antemão o viajante. E era mesmo, um casebre a moda antiga, decorado por madeira consumida por cupins. Desfigurado como quem espera a mãe que já não volta mais. A estrada chama. Aguça os sentidos, apura os ouvidos – sente ao longe? Vai passar. Mas nunca sabemos quem. Ou o quê. Mas passa. Lá vem ele, fazendo a curva. Um carro de boi e um bigodudo risonho. Pegue carona e vá.

Carrega a trouxa nas costas. Ele que de trouxa tinha só o que carregava. Levanta o braço, sacode o polegar – estaciona. “Suba rapaz! Pra onde vai?”. Pergunta difícil. E agora? Adiante, sempre. Vá em frente! Sobe no caminhão, olha para trás. Dois bois, uma vaca. Cheiro de merda. E o vilarejo deixado num passado remoto, de quem já não enxerga depois de alguns quilômetros. Fantasmagórico, abandonado. Deixou ali a vida de peão. E as memórias.

Partiu com seo João, dona Maria, Teobaldo. Pra nunca mais voltar.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Que eu não tenho muito o que dizer

Eu deveria saber me conter. Eu deveria no mínimo contentar-me com o pouco, as migalhas. Talvez um sinal de gratidão. Mas a gente sabe. É, sabemos. A teimosia sempre prevalece, o caminho errado. Seria mesmo errado? Não tenho tanta certeza. Disseram-me que é ingenuidade... Eu acredito que seja só teimosia. Uma cabeça dura insistente pela vertente mais complicada. E diversa. E divertida. Fiquei sabendo do gosto semelhante. Do humor ácido típico, parecido com o que eu costumo ter. Já ouvi gente dizer que sou outra pessoa – sempre fui a mesma, ora, pois. É questão de se identificar. E partilhar qualquer confidência besta, sob uma lua enevoada. E uma chuva rala. Quase vinte e cinco graus. Só partilhar. Reconheceram-se.