terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Edifício 366


Ele falava repetidamente ao telefone como se esperasse algum fio de assunto, perguntar qualquer coisa. Eu, que tinha ligado somente para ouvir aquela voz, perguntar como havia sido o dia, mas principalmente, deleitar-me com aquele timbre tão imitado por meus amigos. É eles sabiam bem, que apesar de enfezada, eu gostava de ouvir até mesmo a réplica daquela voz. Era suave, e eu cá imaginando a expressão que ele fazia a cada sílaba mencionada.
- Huhum, ahhh...
Era a brecha para mais falatório. Como é que conseguia? Tão íntegro, inteligente, tão centrado.
- Porque você sabe, se tiver que acontecer alguma coisa, eu ir embora... Vai ser você.
Acordei daquele sono doentio. O que ele havia dito?
- Han?
- Caso eu tenha de ir embora, sabe? A gente nunca sabe.

- Mas...
- E eu queria que você cuidasse de tudo por aqui.
- Isso é uma afirmação ou uma suposição, afinal?
- É uma suposição, óbvio, mas quem é que pode interpretar o futuro, não é?
A voz que antes acariciava os tímpanos passou a agir como agulhas infiltrando o meu cérebro. O ritmo cada vez mais aguçado da repetição de todas aquelas falas. Será? Bem que suspeitava, logo que entrei na vida dele, que isso outrora aconteceria. Mas já? Tão cedo? Era só um ano que pude acompanhá-lo de perto. Tantas oportunidades, tanto a admirar, como por um ponto final assim, logo no fim do ano?
- Belo presente de natal!
- Não seja irônica comigo, Ana. Você sabia que isso poderia acontecer.
- Mas precisava ser tão logo?
- Eu não imaginava que fosse conhecê-la, não estava em meus planos.
- E não está mais, não é?
Alguns minutos se passaram, o eco de nossas respirações foi retraído por um choro sutil. Mas que droga! Eu não poderia ser fraca, não agora! Juro ter ouvido um engolir grosso antes da próxima fala.
- Eu te levaria comigo se pudesse, você sabe disso. Não chora.
- Chorar te faz ficar com peso na consciência? Parabéns, sentimentalismo nunca foi seu forte!
- Descontar a raiva em mim agora não vai ajudar em nada... Você sabe, eu vou voltar.
- É a promessa de todos, não é?

- Eu preciso de um futuro, um trabalho.
- E o nosso futuro não conta?
- Ele vai ficar para onde eu vou agora: para o futuro.
- Ah, passe bem!
Desliguei o telefone. Estava atônita. Se eu não pudesse partir com ele, partiria de qualquer maneira. Corri pelo corredor do prédio apertando os botões do elevador. Não funcionavam, acho que estavam em manutenção. Nada daria certo a partir de agora, eu previa. Abri a pesada porta da escadaria. Eram oito andares ao todo. Forjaria um tropeço e então o guardaria na memória como o bom rapaz que sempre fora. Sentei. Não poderia fazer isso com ele, as consequências causadas nele seriam corrosivas. Estragaria os planos. Eu não conseguia mais conciliar o choro e a tentativa de tê-lo novamente. O telefone começava a vibrar no meu bolso. Ele. Não atendi, não queria que testemunhasse o meu fracasso.

Uma parte de mim dizia para voltar para casa, me afogar em lágrimas ao travesseiro, assistir uma comédia romântica e chorar mais ainda. A outra parte em contrapartida queria vingança, queria que ele ficasse mal. Mas eu não era assim, eu não partilharia minha dor de tal forma, afinal, ele voltaria, não é mesmo? São Paulo não poderia ser tão longe, não poderia nos impedir. O telefone tocando novamente, insistência. Acho que ele realmente está preocupado. Pensasse nisso antes. Para Ana! Não é assim que as coisas funcionam! Atenda. Se você o fizer, será tão fraca quanto fora quando o perdeu para um emprego longe daqui. Mas é o melhor para vocês. Não, não é.
O conflito dentro da mente não acabaria nunca? Eu precisava por um basta nisso tudo, sempre achei que tinha uma dupla personalidade escondida por trás de minhas escolhas mais insanas. Olhei para o relógio do aparelho celular, uma SMS tinha acabado de chegar, e essa eu teria de abrir. “Ana, por favor, fique bem ok? Não seja imprudente consigo mesma. Sabe o quanto é importante para mim.”. Eu já tinha es
quecido os oito andares de escada abaixo. Agora subia os dois últimos para atingir a cobertura do prédio. Ventava, estava frio, era exatamente 19h50 de uma sexta-feira com horário de verão sendo oprimido por nuvens escuras. Olhei para cima, as gotas tímidas engrossavam e pesavam no meu cabelo. Cheguei até a beirada do edifício e olhei para baixo. Não doeria tanto quanto ele fez doer em mim, certo? Os carros passando, as pessoas fugindo da chuva. Buzinas, pombas se embolando nos galhos das árvores, cada mundinho particular perpetuado aos meus olhos, minha última visão.
Lembrei de quando nos conhecemos, ao acaso, na sala de aula. Fora tirar uma dúvida com a professora e eu de cara já me encantei. Não era nem nunca foi o tipo que agradava minhas amigas, elas que preferiam músculos ao cérebro. Mas desde então, ternura, paciência e compreensão foram fatores fundamentais para crescer o que já havia plantado naquela coincidentemente sexta-feira. E agora aqui, sem ele e com a esperança de extorquir o lamurio das minhas preces de que ele voltaria, atrasava cada vez mais a minha despedida. Cansada de esperar por mim mesma, fiquei de pé diante da cidade. Eram dez andares, sei que edifícios maiores dominavam, sei também que no dia seguinte eu não apareceria em jornais, não era comum denunciarem suicídios. Mas serei eternamente a capa que ilustrará a vida dele, e para mim era o suficiente. Egoísta! Menina egoísta! Não faça isso.
Um passo, os olhos fechados. Adeus.
- Não, Ana! Ana!
Olhei para trás assustada. Então ele veio? Eu mal podia acreditar! Chorava de alegria, o riso misturando-se à chuva, às lágrimas, ao alívio. Tremia. Desequilibrei uma perna já no ar. Queria voltar, mas ao instante que olhava para cima, vendo as janelas e as sacadas passando por mim, vendo a chuva descer da nascente mãe-nuvem. Idiota! Agora sim o perdeu para sempre. Eu não queria, sabia bem, eu não queria. Ainda via o rosto dele desesperado lá de cima, minha hora estava chegando. O baque nas minhas costas não doeria tanto quanto perdê-lo novamente. E foi assim que o fiz.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

É, saiu...

Em meio às reclamações por não conseguir escrever durante o tempo que me ausentei daqui, meus caros, voltei antes que o ano terminasse com uma frase que justificava o sumiço: cérebro pifado!
Obrigada, Alexandre.

Acidente do neurotransmissor

- Parece que pifou o cérebro! – ele ouvia entre tantos reflexos da iluminação incidente naquele leito ao qual se encontrava. Entre tantos passos direcionados.
Sentia-se em uma experiência científica que não deu certo. O peito nu estirado na maca, repleto de sensores monitorando o batimento cardíaco. Ora essa! O coração era de quem afinal? O barulho de bisturis, a máquina ao lado emitindo bips e freqüências semelhantes que indicavam a sobrevivência do paciente.
Parecia aquele seriado de TV, não parecia? Era o que ele buscava imaginar, naquela embriaguez provocada pelos medicamentos em excesso, tudo para inibir a dor. Que dor, afinal, sentia? Qual o resultado de toda aquela curiosidade em perfurar a carne? Era nítida a expressão desfigurada. Por volta dos 22 anos, acidente de carro, as enfermeiras fofocavam no corredor, entre uma xícara de café e outra.
- Mas vai demorar?
- Deus sabe!
- Sobreviverá?
- Isso é com o doutor.
A discussão perdurou até o chamado do médico, que necessitava de mais algum material para cavucar a cobaia. Uma última costura, uma prévia do que havia feito: trabalho finalizado! Luzes apagadas, de volta à enfermaria.
Abriu os olhos sem saber quanto tempo havia ficado ali. Tentou repuxar o braço que era dominado pelo soro gotejante ao lado. Um sobressalto da cadeira e a senhora correu até o pé da cama.
- Não pode ser! É um milagre!
Ainda com os olhos embaçados, reconheceu a mãe, com algumas rugas a mais. Abatida, aparência cansada. Comemorava algo, chamava as enfermeiras... Mas tinha sido somente uma festa! Para que fazer outra, ainda mais no hospital? A volta de uma festa que não acabou com uma simples ressaca.
- Como você está se sentindo, meu bem? – carinhosa como sempre fora, ela acariciou os cabelos já mais compridos que o de costume.
- Parece que pifou o cérebro! – proferiu, antes de cair em sono profundo.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Primeiro e único


Era fim de expediente quando passei no boteco da esquina tomar um café. Sentei defronte ao balcão e, apoiado com o cotovelo, segurava um pito na outra mão. Tragava com tanto prazer, que só um fim de tarde daquele me faria ter a sensação de dever cumprido. A semana toda foi corrida, os dias eram corridos e eu mal tinha tempo para pensar o quão contraditório era achar que a fumaça me faria um bem inexistente. Alívio. Fitei a rua movimentada, de tantos outros seres que foram libertos das correntes assalariáveis.
Tudo começara no jardim de infância, naquelas típicas atividades que teimam em transfigurar a criatividade infantil no papel. E foi bem na ocasião que fomos apresentados.
- Prazer, papel, lápis e borracha.
- Prazer, seu devoto até que os dias se apaguem...
Foi um momento que eu não esperava que ficasse guardado por tanto tempo na memória, mas felizmente ou infelizmente, hoje faz parte do meu ganha-pão, a tal da escrita. Não decifrava muito bem os sentimentos, embora o que eu sentisse fosse mais forte que minha vontade nula de querer parar. Eu não podia, não conseguia... Elas simplesmente surgiam na minha mente pedindo para que minhas mãos as parissem.
- Bem vindas ao meu mundo, Palavras.
E juntas formavam as mais belas frases. Quisera ter escrito aquilo. Era talento? Irreconhecível. Como é que identificaria? Não sabia se eram meus versos, embora tivessem tanto de mim. Nossa ligação era intensa demais para abandonar a prática por qualquer rancor. Eu estava realmente interessado em decifrar como surgira essa paixão, quando fui interrompido por uma garotinha.
- Moço, moço!
Fiquei calado, apenas encarando aqueles olhos esbugalhados. Percebi que as mãozinhas apoiadas no banco ao lado tremiam. Ajudei a frágil criaturazinha alcançar o balcão, era justo que ficássemos a uma altura semelhante, já que estava sentado. Apaguei o cigarro e voltei-me a ela, ansiando alguma reação.
- É ele mamãe, eu sei que é! – gritou a menina para a mãe, que tinha debaixo dos braços pães caseiros – possivelmente um auxílio à renda familiar. Tanto empenho para criar alimento, e eu pensando que me alimentaria de vocabulário para o resto da vida. Estranha a circunstância.
- Em que posso ajudar? – arrisquei. Que mal faria?
- Moço, me dá um autógrafo?
Incrédulo e envergonhado, fitei minha mão. Como era desengonçado! Quando levantei os olhos, percebi que ela empurrava um guardanapo em minha direção, acompanhado de uma caneta bic azul.
- Por favor, moço! Só um autógrafo!
Como é que me conhecia? Aposto que nem sabia ler. Mas resolvi optar pela saída mais fácil, antes que desapontasse a vontade da mocinha. Rabisquei meu nome, como se não me pertencesse. A caligrafia era minha, mas quem é que estava escrevendo?
- Obrigada moço! Muito obrigada! – foi a última coisa que disse antes de pular do banco e correr abraçada ao guardanapo amassado. Segurou na mão da genitora e saíram do recinto.
Qual a graça de guardar um pedaço de papel com o meu nome? Que diferença aquilo iria fazer na vida dela? E como me conhecia, a tal criança? Era impossível acreditar que a cena fosse real, não poderia ser.
- Que foi Beto? – perguntou o senhor, dono do estabelecimento, enquanto enxugava um copo.
- Ganhei uma fã. Minha primeira fã. – levantei e voltei para casa, caminhando e pensando no primeiro e único guardanapo que assinei.

domingo, 8 de novembro de 2009

Ao acaso

Reflexiva por conta de um simples ato, ou a falta dele. Todos que convivem nas proximidades do meu mundinho terreno sabem o quanto desprezo o tal Domingo. Um dia convidativo para o tédio e para a preguiça, que aliados, resultam na perda total de 24h que poderiam ser bem aproveitadas.
Não foi o que aconteceu, já que meu primeiro dia da semana fugiu do esperado. O “Enade”, prova que qualifica o centro universitário que estudo ocupou alguma porcentagem do dia chato. Festinha de criança, e então, como era de se esperar, um filme para fechar a noite. Foi escolhido ao acaso, pois um de meus passatempos é vagar pelos corredores da locadora vendo e revendo os títulos que anseiam por uma platéia.
Na agressividade e intolerância por não encontrar as películas que procurava, optei por “Orgulho e Preconceito”, de 2005, a versão mais recente da adaptação do romance de Jane Austen.
Limito-me a dizer que é uma belíssima história. O que me deixou inquieta? Oras, para onde correram as lágrimas? Jurei não ter escondido a emoção debaixo do travesseiro! Por mais que tentasse, não consegui expressar o quão me maravilhei com as cenas de declaração do pseudo-arrogante Mr. Darcy e da sincera Elizabeth. Presenciei a falência de uma romancista, então. Eis o drama da minha vida, que foge de uma divina comédia para apoderar-se de crises assim. E enquanto não encontro as malditas lágrimas por um happy end, busco tal solução para o fim da minha dramaturgia típica de domingo.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

É também, despedida

Um ano havia se passado até o reencontro, planejado por cerca de um mês antes. À tarde que quase não acontecera, fez mais que um papel de acontecimento banal. Era um novo desafio arremessar-se em outro devaneio do destino, e ela não perderia tal oportunidade. O calor latente de um domingo nada convencional deixava o sorriso dele mais iluminado que o normal. O óculos levemente torto, fora o cabelo, nada tinha mudado em 364 dias em que ficaram sem se ver. Era estranho reconhecer que mesmo com a distância, pouco havia mudado no que conversavam – ainda se davam bem, ainda tinham coisas em comum.
Em uma pausa teimosa de um questionário qualquer – era mal de Lygia sempre fazer esses interrogatórios – fitaram-se por um longo instante.
- Eu gosto dos seus olhos – disse ele, observando o tom róseo apossar-se do rosto dela. Não era a primeira pessoa que fazia tal comentário, mas o timbre da voz dele fazia toda a diferença.
Levantando a cabeça, ela retribuiu o elogio, tentando reposicionar o óculos torto no rosto do rapaz. O silêncio impregnou a atmosfera, os gritos do jogo de truco ao fundo foram ficando cada vez menos audíveis. Ele delineou os cabelos curtos com as mãos, ela fechou os olhos, prestando atenção no que conseguia ouvir além da respiração – Foo Fighters, Learn to fly – era óbvio, ela adorava essa música. E fez jus à tradução: aprendeu a voar.

domingo, 25 de outubro de 2009

Cafés

Texto do escritor deslumbrante, do amigo fascinante, do psicólogo paciente. Carlos Pegurski é, por assim dizer, aquele que me decifra sem olhar-me aos olhos. E hoje, depois de tantos dias sem postar, fiquei por alguns instantes ouvindo "Abbey Road", decidindo então, atualizar com as palavras do adorado curitibano.

O café inaugura as minhas tardes. Um ritual, diariamente. Faça chuva ou falte sal, o descanso dos talheres após o almoço encerra uma curiosa sensação de ansiedade hedônica: a abstinência do café. Que nos toma. Uma aflição, uma ausência do bem-estar da cafeína, um buraco no meio da vontade, um centro em volta da atenção que só se dissipa com o seu cheiro messiânico.
Porque o café é todo aroma. Trabalho com uma moça cujo olfato sofre de uma disfunção lamentável: ele simplesmente não existe. E ela simplesmente não vê graça no café. Não sentir cheiro algum para ela tem lá suas vantagens - na área da enfermagem, vômitos, feridas e secreções são rotina -, mas perde-se aquela sensualidade sinestésica tão particular e a faculdade de manejar o tempo psicologicamente.
Porque o aroma é memória. Eu lembro até hoje do perfume da minha professora do jardindois, a tia Adriana. Um perfume doce, gostoso, maternal. O perfume dela. O aroma do feijão da casa da minha vó. O cheiro da cera que me aprisionava criança. Uma série de odores pueris. Eles guardam em sua fumaça a chave da memória. Basta surgirem que se faz mágica: as lembranças se descortinam maravilhosamente por entre sorrisos de canto de boca.
O café me parece o cheiro mais característico dessas fases tão sem-fim. Quando criança, não apreciava o café como hoje - o aroma do café era próprio do mundo adulto. E é essa sensação de exterioridade que ventila a personalidade que o mesmo aroma tem hoje. O mesmo nariz, em duas formas, se divide entre a saudade de um tempo distante (passado ontem) e a degustação do sabor fresco (passado agora).
Talvez por isso tão logo o almoço satisfaça eu corra atrás das memórias de sempre que o café me passa. Sacoado o corpo, reclama a mente. É hora então do café. Mas não da cafeína, apenas. É hora de sentir o calor dos outros cafés. É tempo de tempo completo.
Talvez por isso marcar um café com um amigo distante no tempo ou no espaço seja tão importante. Pelo amigo, mas pelo café. O café a uma chopada, a uma pizzada, a uma churrascada. Porque a fumaça do café nos transporta para dentro de nós mesmos com muita facilidade. O café é um signo mágico. É nosso. E talvez por isso um meio convite para um café retome toda distância.
Aliás, dia desses a Ana, uma amiga de anos que mora do outro lado do estado, falou em tomarmos um café. Respondi:
- Amanhã que horas?
Ela entendeu que o café era passado de brincadeira:
- Às dezesseis, antes da minha aula.
Mais um café que ficou marcado.


Por Carlos Pegurski

domingo, 11 de outubro de 2009

La Marche de L'empereur

Estimulada pela inquietante curiosidade, assisti “A Marcha dos Pingüins”, de 2005. O documentário feito pelo francês Luc Jacquet retrata a jornada que os pingüins imperiais travam a favor da força que nos move: a vida. Entre a beleza do primeiro encontro dos casais, para as nevascas e as mortes inesperadas por conta do frio, vence a lei do mais forte – ou seria a lei da sorte? O caminho trilhado para ter ao menos três meses de tranquilidade no mar, esperando para a saga do ano seguinte, onde a luta para evitar a extinção da espécie é detalhada de forma tão bela, talvez tenha sido o motivo do Oscar de Melhor Documentário. Em resumo, trata das dificuldades na terra, na água e até mesmo no ar deste animal tão belo. Minuciosamente mostra tanto os obstáculos enfrentados quanto a superação destes.

Eu poderia até fazer uma analogia da vida dos pingüins com o nosso cotidiano, mas não falo do filme por causa da beleza explorada. É claro, não vou negar que eu goste de documentários, nem ouso negar que ache esses animais bonitinhos. Mas confesso que a real atenção voltada ao conjunto foi, na verdade, a trilha sonora. A trilha original, de Émilie Simon, encanta desde a primeira canção, “All Is White”, até as decorrentes, todas de acordo com as cenas apresentadas. Associada à vibração do gelo, à marcha dos pingüins, é viciante e digna de várias playlists por aí.


domingo, 4 de outubro de 2009

Previsão

Um telefonema na noite de sexta bastou para incidir o desespero em meu humor, até então estável. Um maço de cigarros e uma noite em claro não bastaram para aliviar o sofrimento antecipado. Vi o dia chegar, tímido, anunciando a manhã cinzenta de um sábado que eu desejaria não vivenciar.
Esperei o despertador informar que era hora de levantar. Tomei as chaves do carro em minhas mãos já abatidas pelo passar dos anos. Peguei o elevador, fitando aquele estranho no espelho – como a marca da idade perfurava cada vez mais meu rosto! Passei as mãos pelos cabelos, que embora volumosos, tinham uma porcentagem incrível de fios prateados. A essa altura, será que me faltava alguma coisa para conferir?
Atravessei a portaria murmurando um bom dia. O que fez o porteiro, em meio a um bocejo, responder qualquer coisa, voltando a encorujar-se na cadeira. Adentrei o automóvel e observei a névoa brincando com aquela rua tão vazia. O ruído do motor fez alguns dos pássaros preguiçosos levantarem voo e então, rumei para minha vida – herança de meu pai - ver de perto a catástrofe que a ligação do dia anterior havia anunciado. Sempre fui um homem do campo, tal qual meu genitor.
Quarenta minutos de carro passaram sem que eu notasse todas as histórias que se infiltravam pelo retrovisor. Ao mesmo passo que eu ansiava chegar, queria ir pelo lado oposto. Fugir da situação sempre me pareceu uma saída viável, até eu ter certeza de que precisaria conferir os fatos. Avistei a estradinha de terra fazendo curva na casa de tijolos que me confortava durante a semana. Caminho tortuoso e enlameado. Notei algo diferente do que meus cansados olhos se habituaram a ver todos os dias.
A árvore fronte a varanda jazia ao chão como um pedido de desculpas. O telhado, amedrontado, fugira. Os grãos, que precedente a tempestade foram cuidadosamente plantados, colhidos e ensacados, já não serviriam de testemunha para o que eu presenciava. Antes que os empregados acordassem, conduzi as rodas realçadas pelo tom da terra, pela cor do sangue, em direção ao ponto de partida da notícia avassaladora. Era um pé vermelho, sabia bem.
Desolado, já não conversava, mal comia. Pudera, vi minha vida destroçada logo cedo – mesmo horário que me recolhi e a muito custo, adormeci. Desejei que tudo não passasse de um pesadelo com raios e relâmpagos, até que um barulho ao fundo do sonho me fez sair do inconsciente – nitidamente o estrondo não era um trovão, nem um aviso prévio da chuva agendada ao longo do final de semana. Reconheci o som semelhante ao telefone ecoar aos meus ouvidos já afetados, tanto quanto meus cabelos esbranquiçados.
- Interfone! – pensei. Em um sobressalto corri atender, o que teria acontecido agora?
- Bom dia! Seu Sérgio? To com o jornal de hoje aqui, viu o que aconteceu na região que o senhor tem propriedade?
Jurava que era fruto da quimera. Permaneci em silêncio remontando os acontecimentos daquele final de setembro.
- Vou mandar pelo elevador, o senhor quer dar uma olhada?
- Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Um estranho receio

Estávamos em bando, sentados na cantina da faculdade já vazia. A temperatura caía com rapidez, o céu mostrava o vento carregando as nuvens para longe. Amarrei os cabelos para que não caíssem aos olhos, tomei minha blusa, assim como meus amigos e partimos para um dos blocos.
Adentramos em um deles, cuja cor perdera espaço para a escuridão que engolia sorrateiramente o que estivesse à frente. Conforme os passos ecoavam no corredor gélido, cochichávamos a respeito das conversas anteriores. De quem é que foi a ideia de contar histórias de terror? Amedrontados e orgulhosos demais para assumir o medo, seguimos encorajados pelos assovios das portas – que anunciavam a chegada de uma tempestade.
- Para onde vamos agora? – perguntei em tom de desespero.
- Se é que sei, para bem longe de todo o mal – arriscou Antonio, que ficava cada vez mais pálido.
O soar dos calçados em contato com o piso produzia um som cada vez mais alto, quase sobrepondo nossa conversa a procura de um bem estar momentâneo. Fantasmas, mortos-vivos, intrusos... Todos sabiam muito bem qual era o assunto que predominava o pensamento coletivo.
Foi quando, sem perceber, uma das meninas do grupo afastou-se.
- Vou ao banheiro, gente, realmente preciso!
Ficamos um pouco afastados, perto da rampa que nos levaria ao andar debaixo, esperando pelo retorno de Wanda. Estávamos andando há muito tempo, horas talvez, quando avistamos um bebedouro do outro lado daquele imenso corredor – atravessamos com a preocupação em permanecer no campo de visão da menina, que não tardaria a chegar.
Com as histórias deixadas de lado, já ríamos de qualquer besteira, fazíamos piadas sobre tudo, Carlos já mencionava o futebol. Foi quando, de toda aquela atmosfera densa, emergiu um grito. O escândalo, o desespero, o que deveria ter acontecido? Claro que estávamos sós naquele prédio de luzes já apagadas.
- COOOOOOOOORRE! – gritou Wan.
Automaticamente atiramo-nos sem rumo, adentrando a primeira sala que estava em nosso campo de visão. Fechando com força, Hiten permaneceu atrás da estrutura de madeira para ter certeza da segurança do grupo. Encarei todos com os olhos arregalados, engoli grosso e perguntei,
- O que era?
- Um intruso – disse, por fim.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Parada obrigatória

Estava sentada, imersa em pensamentos distantes. Via as árvores correrem pela janela, escondendo-se do friozinho costumeiro de maio. Trajava uma jaqueta verde musgo, a primeira que vi no guarda-roupa. Mirradinha, mal dava conta do frio que eu esperava. Em meus braços, uma bolsa e uma blusa – não reserva, mas eu tinha que devolvê-la. Uma saída se os ventos resolvessem resfriar ainda mais minha maçã do rosto já rosada. Comparava em todos os anos, esse início do mês cinco com a chegada da exposição, aquele sol ameno, a empolgação dos que estavam buscando distrações na cidade que ainda dormia.
Sempre ouvi dizer que os grandes centros, patamares acima de minha cidade natal, não eram mais capazes de conseguir algumas horas de descanso, repouso. Não parava, não conseguia mais parar, afinal, tempo é dinheiro e a crise estava aí para provar a importância camuflada das verdinhas tão almejadas. Era uma terça-feira normal, com acontecimentos aparentemente normais e eu me dirigia à rádio, com a esperança de boas gargalhadas que as gravações sempre rendiam.
Era uma época tensa, parâmetros psicológicos, sentimentais, notas saindo. Tenso, muito tenso. Mas eu levava tranquilamente, afinal, eu tinha me esforçado não tinha? As recompensas para todo o meu esforço em algumas situações não foram de fato merecedoras ou dignas, mas foram, simplesmente – e quem era a menina de jaqueta verde para contrapor as regras e exceções do destino? Se eu afirmo que ele tem complô e não gosta de mim, sou uma pessimista. Se acreditar demais no poder da melhora breve, “para de ser otimista, menina!”. Isso era ou não era vida?
Tantas ideias inflando a capacidade de pensar daquela tarde, apostando com os Beatles que tocavam ao fundo, quem é que conseguiria chamar mais a atenção. E foi justamente que perderam o posto de atenção incidente para a criança defronte minha pessoa. Era certo, eu odiava aquele lugar no ônibus. Mas que diacho, para que fazer um assento de frente para o outro? Era constrangedor para quem tinha de fitar o rosto do desconhecido – se este era mudo ou deveras estranho. Ou então terrível para quem sentasse de costas para o motorista, e tivesse que encarar tantos olhos curiosos fitando-o.
Mas não aquela criança. Aquela definitivamente não se importava com o que pensavam. Devia ter quanto? Uns dez? Talvez onze, ou menos. Menina bonita, dos olhos de burca. Mas só consegui contemplá-los quando ela resolvera acordar do sono forjado para fugir da curiosidade alheia. Fuga, ou receio? Ela parecia pior que eu, que tentava analisar perfeitamente a situação. O sol melindroso fazia refletir seu cabelo encaracolado, o uniforme surrado, e a bolsa que um dia fora cor-de-rosa. Linda menina! Pareceu-me um anjinho. A pele morena, os lábios evidentes, as unhas pintadas de rosa. Criança ou mocinha? Ahhh, essa infância de hoje em dia, quem me vê falando assim crê em minha intensa idade de avó, mas as gerações mudaram, não vamos negar. E a infância que eu tive se perdeu, e por ser minha era a melhor – melhor refúgio, melhor lembrança, era pra lá que eu tinha imensa vontade de retornar, reviver os fatos.
Dos olhos novamente fechados da garotinha, brotaram lentamente lágrimas. Seria de frio? Seu rostinho contraiu-se em dor, em pânico. Mas ela não fez ruído – ou Lennon não deixou ouvir bem? Absolutamente, ela não fizera barulho algum. Mas a lágrima inocente que rolou pela bochecha macia da garota, fazendo curva no queixo agudo, mudou alguma coisa aqui dentro. Não questionava porque aquele anjo derramava aquele símbolo funesto, mas observava a expressão tão meiga transformar-se em um perfil adulto e crescido. Ah como eu detestava crescer antes da hora. Não digo desenvolver um cérebro descente, responsável ou pensante. Isso pelo contrário, eram boas qualidades que eu buscava cultivar. Mas nunca quis perder a identidade que cada idade trazia.
Levantei-me, puxei a campainha. O ponto estava próximo, as risadas também. Desci, e fiquei estática esperando o ônibus seguir seu rumo. Ela me fitou, com seus olhos escuros, seus olhos de burca embalados por enormes cílios. Levantei os óculos de sol, sorri. E para minha surpresa, ela sorriu de volta – e bastou. Era a pureza que me faltava, era a alegria que nos faltava.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

É também despedida

Desde o momento em que o avistou, com o olhar sobressaltado e o coração palpitando de alegria, não se conteve em arremessar-se no abraço que mais precisava nas últimas 48h. O fato descoberto na saída imprevista do final de semana somou-se a falsa esperança já acumulada, e que ela sabia bem: teria de sair dali o mais rápido que pudesse. Em uma fração de segundos a presença dele deu sentido à viagem totalmente fora de cogitação: estava em casa.
Procurando aliviar a saudade – oh, sentimento horrendo! – conversavam sobre tudo o que viesse em mente – só havia aquele momento para aproveitar a companhia mútua. Logo veio a apresentação tão esperada, a música de fundo e, finalmente, o jantar. Seguiram para a fila que se formava, aguardando o momento em que saciariam a fome, quando discretamente uma senhora postou-se logo atrás do garoto de cabelos louros. Incrivelmente mais baixa que ele, a mulher tinha uma pele translúcida, com a textura de papel de seda, dando a impressão de que rasgaria com facilidade. Cabelos cor de bronze e os olhos verdes que se assemelhavam à cor da garrafa de guaraná que cada mesa no recinto suportava.
Cuidadosamente analisava o casal à frente, visivelmente entretido com a letra de Tom Jobim. Cutucou o rapaz, dizendo:
- Vá mais pra lá, fique perto de sua namorada!
A garota de cabelos castanhos e pele tão branca quanto à folha de seda olhou para o suposto namorado. Os olhos dourados dos dois riam, e as risadas ecoaram pelo salão.
- Não, não. Ela é minha amiga! – explicou-se o lourinho de nariz avantajado.
- Meu irmão! – retrucou a branquela.
- Tão amigos, quase irmãos – concluiu com um ar de superioridade.
Desconcertada e levemente corada, a senhorinha não hesitou, comentando logo em seguida,
- Mas isso é muito bonito! Que amizade linda! Difícil ver coisas assim hoje em dia... – e se afastou envergonhada.
Preocupados com a janta, trataram de pegar o que agraciava o apetite e ocuparam seus lugares na mesa, junto com os outros amigos, relembrando e rindo do fato que tinham acabado de presenciar. No mais tardar daquela noite que marcava o início de uma longa semana, adentraram o automóvel e partiram rumo ao momento indesejado. Com o santana azul marinho estacionado frente ao condomínio onde ele morava, chegou a hora que a menina de bochechas rosadas não suportaria enfrentar: o adeus.
Doía, fragmentaria a alma, sabia bem. É uma das piores sensações que uma pessoa poderia ter. Abraçaram-se demoradamente, quando ele beijou-a ao rosto com ternura. Segurou-a pelo braço enquanto ela fitava o nada, procurando esconder o olhar transbordante. Tudo consequência daquela inviável situação.
- Eu estou te dando tchau! – disse áspero, talvez pela disfarçada indiferença dela.
Dilacerada, abaixou a cabeça. Foram poucas horas, mas o suficiente para confirmar o imenso carinho que sentiam um pelo outro. Sem conseguir encarar aqueles olhos tão severos, abraçou-o novamente sem dizer uma palavra. Observou o caminhar dele até a porta de entrada, até desaparecer.
Não queria um adeus, nem mesmo um até logo confortaria a pobre moça. Era notável o que realmente ansiava.
- Meu irmão!

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Múltipla escolha


O desafio do pensar impondo as condições de saúde mental. A sanidade esvaindo-se, as vozes entoando canções deliberadas em mente. O cansaço derrubando o corpo que ao chão jazia há algum tempo. Ideias construindo-se por códigos pautados nas vivências dos últimos dias.
Os nós que o cérebro dava em questão de segundos, diante das tentativas de justificar o que veio acontecendo no espaço de um mês de lá pra cá. Valores distorcidos, alterando os princípios de toda uma vida.
De fato, foi a maneira como aqueles personagens adentraram minha essência, revirando-a de cabeça para baixo. Sei que a confiança depositada tão rápido corresponderá à formação desse laço amistoso tão excêntrico e inconseqüente. E quem responderá pela insanidade presente nos passos é a mesma formuladora de questões. De um lado, a razão. Do outro, quem poderá dizer?

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Bolo e guaraná

Tomei-o em minhas mãos trêmulas, fitando aquela luz que dançava diante de meus olhos iluminando todos os pontinhos coloridos não só dos confeitos, mas também de toda uma vida. O dia ímpar por natureza dos fatos se tornava mais diverso a cada minuto que somava as vinte e quatro horas daquela data – e sei que muito me aguardava por todo aquele amanhecer, entardecer e anoitecer. Até que a madrugada caísse, eu já não seria a mesma.
Pensando se desejaria algo, avistei na penumbra vários rostos familiares – daqueles que realmente desejaram de todo o coração. Eu queria fazer um pedido assim, do fundo da minha alma, como se pelo fato de suplicá-lo ele se tornasse real. Sorri como teria sorrido aos meus quatro anos de idade, enquanto pedalava aquela bicicletinha cor-de-rosa. Vários outros flashes tomaram conta da situação, como se de repente eu fosse a principal espectadora de minha bagagem.
Risadas ecoavam, mutações aconteciam, e por mais rápido que tenha passado eu consegui vislumbrar todas as faces que se foram e as que permaneceram – todos me encorajavam a pensar em algo bom e assim apagar toda aquela chama de uma vida acesa. A cera derretia com o passar dos minutos e escorria sob os açúcares coloridos. Meus olhos marejados já não identificavam os vultos e as cores, era tudo um borrão.
Em um sobressalto sentei assustada, olhando para a parede escura. Algo cantarolava ao meu pé, fazendo com que eu me livrasse de todas as roupas jogadas por cima do criado-mudo, buscando algo que identificasse aquela movimentação. Consegui encontrar, por conta de um feixe de luz cantante, meu aparelho celular. Atendi sonolenta, e então percebi o sonho que tive – na verdade não o era só relances em mente de um bolinho enfeitado. A ficha caiu depois de desligar o telefone, foi o bastante para que eu compreendesse os meus dezoito anos alcançados.
Notei que ainda era madrugada e deitei novamente.
Fechei meus olhos como se fosse a última vez que o faria e assoprei a vela, desejando que tudo dali em diante fosse diferente.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Dente de leite

Eles pareciam tão simpáticos para os outros, até conhecê-los o suficiente para saber a roubada em que fui arremessada. É, arremessada. Eu não queria isso para mim, não queria ir até lá. Aquela sala fria, o eco da televisão ensurdecendo meus ouvidos já acariciados pelo vento. Sentado atrás da mesa, o juiz que declarou minha escravidão temporária.
Primeiramente me fez acreditar que aquela seria minha única salvação – estava decretado. Tola, ou talvez guiada pela maneira convincente exposta pelo ditador, arrisquei. Sofrendo as consequências dolorosas de arriscar-me em busca de uma razão a mais para sorrir. Agora talvez meu sorriso esteja ofuscado, e a culpa foi de minhas decisões, meticulosamente estudadas e colocadas em prática em uma plena sexta-feira.
Repousando naquela poltrona confortável, discutíamos a respeito da insanidade que a temperatura se submetia, certos de que estaria surtando pela região naquele final de semana de maio. A competição de futebol no sábado não seria a mesma, não com aquele frio cortante. Agasalho seria a solução para este caso, embora o caso que eu estava a vivenciar exigisse mais que um moletom. As luzes me cegaram, estacionei boquiaberta em algum comentário aleatório, e foi então o ponto de partida.
A claridade me impedia de decodificar os sorrateiros vilões a minha espreita. Inicialmente uma injeção, com algum líquido cor de agonia. Depois, exceto pelo frio, não sentia absolutamente nada. O que fariam comigo ali? Eu voltaria para casa? Se voltasse, com certeza seria muito diferente desde então. Depois de esvaziar meus sentidos, acorrentaram meus amigos que trajavam roupas de um pérola reluzente. Em tentativas inúteis de clamar um pedido de socorro, foram enrolados com um arame na doce ilusão de que ficariam melhores de alguma forma. O ferro que viria a machucar-me também, e eu mal suspeitava.
Já os tinha perdido uma vez, não ousaria mais falar se isso voltasse a acontecer. Não pela falta de fala, mas pelo significado que as coisas teriam a partir dessa despedida. Depois de estarem imobilizados, veio a decoração inconveniente a qual foram submetidos, escolhidos por mim, que decidi neutralizar as inúmeras colorações que haviam de cobri-los. Da doce pérola que já expressaram tantos momentos de felicidade, surgiu o preto e o branco, dando espaço para o desprezado sonho de um dia sorrir novamente. Condenados.
Já tinha visto tantos casos de desleixo com os amigos perolados, mas eu, que tinha um carinho imenso por eles, acabei entregando-os de bandeja a uma ideia mal formulada, pautada na necessidade de sobrevivência do homem que me recebeu com um aperto de mão. Este, que prometeu um curto tempo para que eu me acostumasse em tê-los tão diferentes. A essência poderia ser a mesma, mas eles nunca mais seriam aquela infância ou adolescência. Crueldade de minha parte condená-los assim, justamente quando aparentava cuidar tão bem dos pobres meninos.
Péssima educação, embora a culpa não fosse total minha, afinal, eu não queria que eles começassem a brigar por conta de uma invasão de espaço. Mas se ultrapassaram os limites, tiveram que arcar com as consequências dolorosas que vieram posteriores à discussão. No final da história, quem arcou com todos os sentidos depois do efeito da agulhada fui eu mesma. Um acerto de contas, um aceno de cabeça, uma olhada no espelho – não me reconheceria mais por alguns dias. E a notícia tão estrondosa: os vizinhos ainda vestidos com o antigo uniforme sofreriam por conta de um plano bolado pela escala debaixo, que não quis sofrer sozinha. Foram agraciados com mais uma semana de liberdade.
Quanto a mim, sentindo minha carne sendo esbagoada pelo remorso de ter sido brutalmente arremessada para essa decisão e conclusão dramática, passei a odiar os então aparelhos dentários.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

De volta para o presente

Em resistência à gripe que atormentava a população, eu passava álcool nas mãos e retornava à sala de aula. Seguia pelo corredor porcamente iluminado observando o frio domando minha pele que eu já não sentia mais. Gélida, da mesma forma que o clima se encontrava aquela semana – em especial a sexta-feira sem cara de sexta-feira.
Sim, o dia tão almejado por tantos em busca de um descanso. Para mim, a data era ímpar por outro motivo que eu mal sabia explicar. Esquerda e direita, frias não por conta da substância em contato - percebi o corpo inteiro tremendo com a temperatura baixa – não de frio, notei. Era medo, mais uma vez me consumindo.
Decidi que agora seria diferente, tudo daria certo desta vez. Minha inspiração estava de volta.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Do outro lado

A sombra do outro lado
No parapeito da janela
Um reflexo, destelhado

O tec tec das palavras
Máquina de escrever
Os cabelos esbranquiçados
Sinal do tempo, aparecendo

Escreve? Não sei dizer
Observa-me
Há tempos, tentando entender

O que és? Poeta?
- Trilho minha estória,
Observador nato,
Navegador da vida!

Proclama então, escrita
Registro de um monólogo
Reflete o que quis ver

Adoece! Maremoto, calvície!
O tempo, ah tempo!
Dê-me algum registro,
Mais alguns dias
- Sou só, escrevo, escravo, relato,
Mais nada.

domingo, 9 de agosto de 2009

Vou de táxi...

Era mal daqueles jogos que eu teimava em acompanhar, dizia minha mãe.
- Menina, você sempre volta doente depois desse futebol!
Talvez fosse verdade, ou só uma de tantas outras coincidências, afinal, eu nem sequer jogava. Que dirá gritar em tom de torcida animada. Acompanho nem eu sei por que, mas eu estava lá. E a doença cá.
Agora, aqui, com um vírus instalando-se e movendo a temperatura do corpo para um calor incomum. Foi o que disse um amigo que forjava a medicina. As coisas giravam, embora o corpo quente, eu ainda sentia frio. Doía até o osso, os calafrios começaram a me consumir. Resolvi aconselhada pela desistência, que estar em casa na companhia de um edredom e uma xícara de chá seriam a solução apta para uma pseudo doença. Eu não aguentava mais ficar ali, e isso eu sabia muito bem.
Entreguei meu trabalho digitado, sobre uma história infantil que eu tinha achado, embora inteligente, desnecessária para o andamento da aula que mal existia. Era uma daquelas horas em que você não absorve absolutamente nada do que lhe é passado. Pelo menos eu me sentia assim. Juntei meu material, sai da sala e liguei para um táxi vir me buscar – ah, terrível não ter um carro na mão. Ta achando ruim? Nem idade pra dirigir eu tinha. Depois de uma breve discussão para decidir o portão de embarque, caminhei até o meu destino. Portão um.
Fiquei escorada na grade em frente à rádio por uns vinte minutos, e nenhum sinal da minha carona. Liguei para confirmar o envio do automóvel. A voz do telefonista era tão similar àquela que eu daria tudo para ouvir naquele instante, que a semelhança bastou para aliviar minha raiva diante da demora. Paciente, aguardei. Não demorou tanto, apareceu. Carro branco, dizeres em letras azuis destacaram-se. Entrei,
- Boa noite – cumprimentei o motorista.
- Boa noite, me desculpe pela demora! – respondeu o condutor.
- Que isso... – foi o que consegui dizer, então.
- Pra onde?
- Martin Afonso, três meia cinco, por favor.
- Sabe o melhor caminho para se chegar lá?
Pensei um pouco, ele é taxista, deveria saber por onde ir, não deveria?
- Não, não faço idéia – disse.
- Sabe pelo menos onde é o lugar?
Era minha casa, eu provavelmente deveria saber para onde estava indo. A febre fez sobressair a razão? Ainda não, espero.
- Sei sim.
Fiquei olhando para fora, os universitários em suas devidas aulas após intervalos tão apressados em passar. As luzes da cidade cintilando, era tudo tão bonito. Eu adorava minha cidade, ah, como gostava! Passar de ônibus frente à igreja cartão postal era uma das minhas cenas favoritas durante a semana. Fui prestar atenção na música ao fundo, nem tinha notado o rádio ligado. Com absoluta certeza eu diria “Abba!”, se não fosse a cópia feita por aquela artista loira, tão consagrada rainha do pop. Só o comecinho, mas foi o suficiente. Era uma de tantas outras músicas do Abba que eu gostava – ora, como eu tinha facilidade em gostar. Do que não gostava? Difícil dizer. Fui ouvindo, e para variar, meus pensamentos fluindo, moldando textos em minha mente, que infelizmente perderam-se meio aos outros pensares que substituíram a ideia em foco.
Estava acontecendo exatamente isso. Os focos mudando. Eu e minha lentidão, sempre caminhando abraçadas, nem prevíamos isso. Só notei quando o meio caminho simplesmente foi percorrido.
- Opa! Esqueci de ligar o taxímetro! – a observação emergiu daquele silêncio tão reconfortante.
- Haha, desconto então? – arrisquei.
- É, desconto pro cliente!
- Como funciona um taxímetro? – porque é que eu nunca conseguia ficar quieta? Não era hora de a minha timidez sair a passear.
- Funciona com base nos quilômetros rodados e na velocidade.
Quilômetros e velocidade? Mas não daria na mesma? Eu teria que pagar tudo no final, de qualquer forma.
E as luzes passavam, ao piscar de meus olhos semicerrados. O calor ainda domava minha mente, as ideias ardiam. Cheguei ao ponto tão almejado. De partida, de saída, de recordar. Desci, arrastei-me por três andares de escada, assustei minha mãe por chegar mais cedo. Despi aquela vestimenta carregada, ainda insistia em me fantasiar de mendiga quando chegava ao lar doce lar – era confortável ao menos. Doses e mais doses de remédio, sabia que nenhum faria efeito. A doença era da alma, não do corpo – que mal parava de pé. Abri a janela, fitei o céu por alguns instantes. Doce brisa. Desabei encarando o teto, com a música do táxi em mente, fazendo filmes e mais filmes se repetirem diante de mim. Fechei os olhos.
Não existia mais calor em excesso, janela, música ou teto. Jamais existiu.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Teatro individual

Fugindo temeroso do vento frio cortando meu rosto, as luzes da cidade pareciam moldar o cenário mais depressivo que eu presenciara na altura de meus 27 anos.
Sujo e arremessado na desesperança inquietante, quem eu era? Um projeto de ator impossibilitado de atuar na principal peça de minha carreira: a vida. Jogada às traças, era mais simples interpretar o psicológico de alguém já pronto. Eu male má possuía um perfil que me descrevesse. Ouvi a vida intera, “Jonathan, menino, vá viver”. Não era bem assim, mas só eu compreendia. Órfão desde os catorze, oprimido e injustiçado. Eu só não era a vítima quando o personagem não exigia – ou existia.
Seria real a situação? Pela primeira vez em tanto tempo eu sai do quarto da pensão para tomar um ar. O bairro distante do centro, do agito, dava a incrível visão dos prédios ao longe, todos tristes. Azuis. Eu cantarolava a calmaria de uma Bossa Nova. Inaugurando uma vida nova.
Sem premeditar do lado escuro da rua, um grito arrepiou a noite. Ao chão, meus pés eram domados pelo liquido carmim. Um corpo, três tiros e um fugitivo. Em minhas mãos a prova do crime, pobre desfalecido. O que eu fizera? Uma lacuna em minha mente, e em vão eu tentava remodelar a sequência dos acontecimentos até meus ouvidos detectarem uma sirene ao fundo.
Mas tenha misericórdia, eu não consegui ver o semblante do culpado. Por isso levaria a culpa? Observei o corpo ao chão, já desbotado, coitado. Aparentava ser menor de idade. Motivo da morte? O de sempre, um viciado.
Os homens então chegaram, analisando a cena: um cadáver, um culpado e uma arma. Visão turva, tendenciosa e sem vida. As algemas tão frias quanto às luzes da cidade, quanto ao espírito vagando sem esperança alguma. Era minha condição de espírito.

CORTA!

terça-feira, 28 de julho de 2009

Vinte e três

Vinte e três de maio. Entro no elevador em um sábado qualquer, aparentemente. Na esperança de ver refletido meu rosto em trégua com o sono, o espelho da máquina era ofuscado por um dizer grande de luto. Analisando o comunicado, senti que o serviço fora feito com precisão. Doce senhora do 102, sempre tão simpática. O rosto atingido pelo tempo, os cabelos exibindo um caráter de idade, o prateado sempre ajeitado em um corte chanel contrastando com os óculos postos. Olhar atento. Levava uma vida normal, sempre regando as plantas pela manhã – nunca as deixara na mão. Com o marido a viajar, era solitária durante a semana. E agora? A flor que simbolizava a vida havia murchado.
Visão triste ao observar o esposo atirado por cima do caixão, em uma frustrante tentativa de fazê-la permanecer. A lágrima nos olhos, a expressão de ingratidão por me ver ali. Sequer via, talvez sentisse a dor dilacerando a carne, as lembranças alfinetando o que deveria, por hora, cair no esquecimento. Mais cruel que a morte, somente a vida. Só os que se deixam levar pela aquisição de minuciosos quadros de memória é que se machucam depois. Definhar não dói, imagino – se o faz, não há meio de recordar o ardor de morrer posterior a ruína.
Morte. Temida, injustiçada, sofredora dos pecados alheios por simplesmente fazer o que lhe é designado. Pior que isso, quando não há serviço que tenha de ser feito e o fazem no lugar. Acidentes, descuidos, desculpas. Bastou para atirarem a Morte em uma fogueira de palavrões, ressentimentos. Juram vingança e então eu desapareço. Não era de meu feitio acompanhar aqueles que sofriam a perda, mas a consciência me fez permanecer. E ficando, acabei por assistir as consequências de transitar em um mundo paralelo ao meu. Era sem querer, juro! Apenas chegava a hora, o nome em lista, o chamado – e então o sofrimento dominava os entes queridos. Era o que destacava aquele senhor, tão passado pelo tempo quanto a falecida, que já nada tinha a fazer. Digo, vontade era o que faltava, perdeu-se a razão, eu o desprovi de razão. Arremessei o condenado frente ao juízo perfeito, quando o desejo era estar ao juízo final, lado a lado com a esposa.
Uma semana recebendo visitas sem entender a atmosfera que o cercava. Dia e noite sem cansar eu fitava aquele corpo imóvel da extremidade do quarto de hóspedes. Nem no quarto de casal tivera coragem de botar os pés. E ficava ali, estirado no colchão de mola já empoeirado, mergulhado em um cômodo tom sépia, com cortinas amareladas e o guardarroupa exalando naftalina. As horas apressadas pouco significavam para quem teve a vida sugada pela terra. A lembrança do espelho me fez estremecer - eu não queria levá-lo para baixo como fizera com sua metade. Mas o prelúdio deu-se quando o senhor resolveu sair da quarentena.
Respirou fundo, colocou o pé direito ao chão - a sorte dependeria disso. Caminhou ronceiramente até a cozinha, abriu a janela. Talvez visse a luz no fim do túnel se fosse provido de ventura. Em uma tentativa de retomar as atividades, chegou até a sacada a fim de regar as plantas – não tinham culpa, pobrezinhas. Foi então que a fraqueza tomou as rédeas da situação. E quando digo que crueldade não é meu lema, descuidos acontecem. Um desmaio prévio, afinal, todo aquele tempo sem comer indicaria o carma. O que não previ foi o vaso ao chão chocando-se com a cabeça embalada por fios tão brancos quanto algodão. Algodão que foi encharcado por um vermelho vivo, acabando por enxaguar o piso com a tonalidade mórbida.