quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Parada obrigatória

Estava sentada, imersa em pensamentos distantes. Via as árvores correrem pela janela, escondendo-se do friozinho costumeiro de maio. Trajava uma jaqueta verde musgo, a primeira que vi no guarda-roupa. Mirradinha, mal dava conta do frio que eu esperava. Em meus braços, uma bolsa e uma blusa – não reserva, mas eu tinha que devolvê-la. Uma saída se os ventos resolvessem resfriar ainda mais minha maçã do rosto já rosada. Comparava em todos os anos, esse início do mês cinco com a chegada da exposição, aquele sol ameno, a empolgação dos que estavam buscando distrações na cidade que ainda dormia.
Sempre ouvi dizer que os grandes centros, patamares acima de minha cidade natal, não eram mais capazes de conseguir algumas horas de descanso, repouso. Não parava, não conseguia mais parar, afinal, tempo é dinheiro e a crise estava aí para provar a importância camuflada das verdinhas tão almejadas. Era uma terça-feira normal, com acontecimentos aparentemente normais e eu me dirigia à rádio, com a esperança de boas gargalhadas que as gravações sempre rendiam.
Era uma época tensa, parâmetros psicológicos, sentimentais, notas saindo. Tenso, muito tenso. Mas eu levava tranquilamente, afinal, eu tinha me esforçado não tinha? As recompensas para todo o meu esforço em algumas situações não foram de fato merecedoras ou dignas, mas foram, simplesmente – e quem era a menina de jaqueta verde para contrapor as regras e exceções do destino? Se eu afirmo que ele tem complô e não gosta de mim, sou uma pessimista. Se acreditar demais no poder da melhora breve, “para de ser otimista, menina!”. Isso era ou não era vida?
Tantas ideias inflando a capacidade de pensar daquela tarde, apostando com os Beatles que tocavam ao fundo, quem é que conseguiria chamar mais a atenção. E foi justamente que perderam o posto de atenção incidente para a criança defronte minha pessoa. Era certo, eu odiava aquele lugar no ônibus. Mas que diacho, para que fazer um assento de frente para o outro? Era constrangedor para quem tinha de fitar o rosto do desconhecido – se este era mudo ou deveras estranho. Ou então terrível para quem sentasse de costas para o motorista, e tivesse que encarar tantos olhos curiosos fitando-o.
Mas não aquela criança. Aquela definitivamente não se importava com o que pensavam. Devia ter quanto? Uns dez? Talvez onze, ou menos. Menina bonita, dos olhos de burca. Mas só consegui contemplá-los quando ela resolvera acordar do sono forjado para fugir da curiosidade alheia. Fuga, ou receio? Ela parecia pior que eu, que tentava analisar perfeitamente a situação. O sol melindroso fazia refletir seu cabelo encaracolado, o uniforme surrado, e a bolsa que um dia fora cor-de-rosa. Linda menina! Pareceu-me um anjinho. A pele morena, os lábios evidentes, as unhas pintadas de rosa. Criança ou mocinha? Ahhh, essa infância de hoje em dia, quem me vê falando assim crê em minha intensa idade de avó, mas as gerações mudaram, não vamos negar. E a infância que eu tive se perdeu, e por ser minha era a melhor – melhor refúgio, melhor lembrança, era pra lá que eu tinha imensa vontade de retornar, reviver os fatos.
Dos olhos novamente fechados da garotinha, brotaram lentamente lágrimas. Seria de frio? Seu rostinho contraiu-se em dor, em pânico. Mas ela não fez ruído – ou Lennon não deixou ouvir bem? Absolutamente, ela não fizera barulho algum. Mas a lágrima inocente que rolou pela bochecha macia da garota, fazendo curva no queixo agudo, mudou alguma coisa aqui dentro. Não questionava porque aquele anjo derramava aquele símbolo funesto, mas observava a expressão tão meiga transformar-se em um perfil adulto e crescido. Ah como eu detestava crescer antes da hora. Não digo desenvolver um cérebro descente, responsável ou pensante. Isso pelo contrário, eram boas qualidades que eu buscava cultivar. Mas nunca quis perder a identidade que cada idade trazia.
Levantei-me, puxei a campainha. O ponto estava próximo, as risadas também. Desci, e fiquei estática esperando o ônibus seguir seu rumo. Ela me fitou, com seus olhos escuros, seus olhos de burca embalados por enormes cílios. Levantei os óculos de sol, sorri. E para minha surpresa, ela sorriu de volta – e bastou. Era a pureza que me faltava, era a alegria que nos faltava.

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