quinta-feira, 4 de novembro de 2010

É o primeiro dia do resto da minha vida

Um contra-senso. Acabou por inverter a história. Quando pequena, deitava-me e, religiosamente pedia que minha mãe contasse alguma história. Tinha adoração por Chapeuzinho Vermelho e os Três Porquinhos. Gostava ainda quando ela resolvia, de muito bom humor, inventar alguma narrativa. Ingratidão a dela ao me levar a um lugar chamado escola. Deu-me opções: a pública e a particular. Na cidadezinha onde morava, a última garantia os mimos de cadeirinhas e mesinhas coloridas. O que de nada adiantou, de colorido eu me bastava com minha caixa de Faber-Castell com divinas 48 cores. Optei por mesas e cadeiras normais. O primeiro dia, não esqueço, a novata. Mil rostos fitando-me dos pés à cabeça – não que houvesse muito espaço entre um e outro. Era o ápice da minha meia dúzia de velas assopradas.

Um pecado, largar aquele projeto de gente à mercê da professora e de um batalhão de curiosos. Ainda lembro-me da primeira pergunta: “Você tem cachorro?”. Tinha. A Kika, que infelizmente perdera a vida em um incêndio. Mas não vem ao caso, afinal, o choro entalado na garganta resolvera anunciar a chegada de mais convidadas: lágrimas e lágrimas rolando pelo meu rosto – que nunca imaginara receber, futuramente, visitas periódicas da tal de Acne. Enfim. Chorei. Chorei. E passei as horas seguintes em uma salinha especial. Não entendia porque a salinha era especial e, anos mais tarde, descobri o que era síndrome de down - a rima forçada não fora de propósito, perdão. Todos tinham direito de aprender, e eu, obviamente, de chorar.

Desesperada ao ouvir o que a diretora relatava. Que conduta terrível da menina, anti-social. Fechamos um acordo com a bibliotecária: eu iria me juntar aos outros de mesma idade, à contra gosto, mas a oferta era válida. Poderia dali em diante, emprestar quantos livros eu quisesse daquele lugar mágico que me acolhia tão bem. Meus primeiros passos na literatura, quem sabe. Sorte minha que consigo lembrar, ainda em detalhes, do pior dia da minha vida. Esbaldava-me em casa com tantas figuras de coelhinhos, ratinhos e bonequinhas. E dizeres curtos, porém, tão significativos.

Hoje, ironicamente, me peguei lendo crônicas recém adquiridas para minha mãe. Antes de dormir. Nada comparado a chapéus ou porcos. Quiçá, camelos e agulhas, aniversários de crianças ou domingos de sol. E, de muito bom humor, entoava algo que anos mais tarde viera a aprender a gostar e escrever: crônicas. Hora de contar histórias e dormir.

2 comentários:

  1. A melhor crônica é aquela que ninguém contou, mas que sempre parece familiar.

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  2. Adorei a sua "não ficção" ana (só p quem entende... =P)... tah cada dia mais sensível aos detalhes em menina. Parabéns! Você merece pela sua dedicação!

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