segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Eu não me importo

O frio gela até a alma, se é que ainda a tenho, se não a vendi em um desses dias de fogo. Sabe que para esquecer a vida, se é que posso chamar isso de vida, doses e mais doses de álcool acalentam qualquer coração congelado. Alzheimer momentâneo, fuga passiva. E o efeito teima em passar cada vez mais depressa. Tentei outras coisas mais pesadas, que prolonguem o efeito de minha ausência terrena, mas careço de ter doses ainda maiores de cada substância dessas. Dilacera-me aos poucos. Por ninguém se importar, eu não me importo.

Pesco algumas lembranças que boiam na memória já diluída pela falta de oportunidade. Ou falta de vontade - não serei negligente com minha própria situação. A barba volumosa fornece a prévia dos dias em que não vejo um chuveiro. Um espelho. Os hábitos asseados que um dia já tive. Mal consigo lembrar aquela época, hoje distante, apagando-se gradativamente. Já não faço perguntas, não quero respostas, evito prolongar o raciocínio. Mantenho o corpo inanimado ainda bombeando sangue. Veneno que mantenho minhas angústias em quarentena. Pertence que não posso doar vender ou mesmo liquidar. O sangue ainda me deixa vivo o suficiente.

E percebo, com certa dor, que diferença nenhuma fiz. Que deixei a lacuna da minha vitalidade vazia. Enterrei-me na vala que eu próprio me dispus a cavar. Sem casa, família, identidade ou história. Não lembro e, pior, ninguém mais se lembra quem eu era, sou e, quem sabe com alguma clemência, serei. Cansei de albergues, de agir e ser tratado como animal. Cansei do teto onde moro ser tão bipolar: hora faz sol, hora cai um pé d’água. Cansei de respirar fumaça de automóveis, de ver miséria, de perceber que minha ignorância atou-me à inutilidade. Que a preguiça e falta de perspectiva nocautearam meus sonhos que não consigo recordar quais eram. O oco dentro de mim não pode informar se sou pai, filho ou simplesmente humano. Apenas sou, existo. Sei disso porque penso, critico. E só sei criticar, nada mais.

Meus dentes batem uns aos outros, o clima sugere outra mudança na temperatura. Capaz, em plena primavera. É o caos. Enrolo-me nos trapos que ocupavam o guarda-roupa de alguma alma supostamente caridosa, que o esvaziou e diz ter feito boas ações. O vento intenso faz com que meus olhos permaneçam semicerrados. Meus cabelos desgrenhados não conseguem se embaraçar mais. Abraço meus joelhos, aperto meus braços repletos de feridas, picadas. Tateio os bolsos. Nada. Não tenho mais condições de manter os vícios, minha salvação. Relutei até fechar os olhos. Frio é psicológico. Frio é psicológico. Frio é psico...

"O coordenador do pronto-socorro de Mandaguari, no noroeste do Paraná, Eron Rodrigues Barbiero, confirmou hoje a morte por hipotermia de João da Silva Oliveira, de 40 anos, ocorrida durante a madrugada, em frente a um bar. Segundo Barbiero, ele teria saído de casa para beber bebida alcoólica, o que fazia com frequência, e acabou passando a noite na rua. A vítima foi encontrada sem agasalho. Barbiero disse que Oliveira não tinha patologia crônica que pudesse levá-lo à morte, por isso o atestado confirmou a hipotermia. O município de Mandaguari fica próximo de Maringá, onde o Instituto Tecnológico Simepar registrou temperatura de 6,5 graus positivos durante a manhã de hoje."

Agencia Estado, atualizado em 14/7/2010 às 17h10

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