sábado, 13 de março de 2010

Torta de maçã

Estava sentada em um café qualquer, tentando esquecer a vida que me aguardava lá fora, quando me deparei com um conflito entre um casal de amigos. Tinha tanta gente diferente naquele ambiente escuro, mas parece coisa do destino puxar a minha atenção pro canto inferior da lanchonete, logo ao lado do banheiro.

Eu conseguia ver o garoto de costas e o rosto da menina, sentada à frente dele, com uma caneca em mãos. O vapor embaçava a lente de seus óculos, e eu, mesmo sem enxergar a cor da íris da moça, conseguia perceber que o olhar era profundo e carregado de preocupação.

Levantei-me e sentei-me à mesa mais próxima aos dois. Eu realmente queria ouvir o que tinham a dizer um para o outro.
- Porque você é cabeça dura. – dizia ela, quase que em um sussurro.
- Como assim? – respondeu ele, com ar severo.
- Jeff, não adianta o que eu tenho para falar. O que seus amigos dizem. Você nunca nos dá ouvidos, sempre faz o que quer. Sempre vai fazer o que achar certo, porque para você, você sempre está certo.
- O que é que eu fiz agora, Andy?

Ela pousou docemente a caneca de café com leite sobre o tampo de madeira rústica que padronizava o ambiente. O final de tarde cinzento lá fora, ela passou a observar os poucos carros que atravaessavam aquela estrada deserta. Virou a cabeça envolta por uma touca xadrez, olhando firmemente para o semblante do rapaz.
- O que é que eu devo fazer, então? – insistiu.
- Só não se iluda. Já é um grande passo. – foi o máximo que conseguiu expressar antes de abaixar a cabeça.
- Eu não me iludi. Já falei. – martelava ele no assunto.

Andy, assim da forma carinhosa a qual ele a chamara, tomou em suas mãos novamente a caneca e passou a brincar com o resto de líquido que ali dentro se encontrava. Ficaram em um doloroso silêncio por alguns instantes, até que ela respirou fundo, e, quando eu me enchi de esperanças de que ela fosse dizer algo, desatou a chorar. Não um choro escandalizado, sabe? Mas eram visíveis as lágrimas apostando corrida por entre as curvas de seu rosto delicado.
- Eu não entendo vocês, homens. Primeiro você diz que ela é chata, metida. Desdenha a companhia dela. E agora sofre.
- Eu gostei de ficar com ela, só isso. Não estou errando. Ela foi diferente da pessoa que eu via, por cinco minutos, mas foi. Por cinco minutos ela foi bonitinha, não falou besteira. – tentava fundamentar.

Mais uma vez olhando o estacionamento do local, vendo o dia despedir-se, ela tomou coragem novamente para dizer o que achava que deveria dizer naquele momento.
- Eu só não quero que você se machuque, está bem? – por um minuto ela voltou a ser aquela menina doce do início do café, que conversava descontraída até mesmo com o moço do balcão.
- Como faço para não me machucar? – perguntou da maneira inocente que ele tinha como identidade.
Ela pensou por um instante. Removeu as luvas que protegiam as mãos do frio e passou a pegar o açúcar que estava caído ao redor do pires com a ponta dos dedos. Os resquícios do que já fora uma torta de maçã se encontrava ali naquele mesmo pratinho.
- O dia que eu descobrir, eu te aviso. – Foi o que conseguiu formular na hora. – Se eu sou chata e fico tentando te aconselhar, é porque só quero te ver bem.

Ele, visivelmente comovido com as palavras da amiga, passou a brincar com as luvas postas de lado, enquanto ela, ansiosa, aguardava por algum posicionamento dele. Nisso, dei-me conta de que meu café havia esfriado. Pausei para chamar a garçonete, pedi um pedaço de torta de maçã e mais um café. Acho que a conversa ali ia longe, e a minha curiosidade me impedia de sair àquele fragmento de hora.

Voltei minha atenção aos dois, que como uma pausa de filme, estavam intactos, um tentando descobrir a reação do outro.
- Eu não estou iludido. Não estou apaixonado, relaxa. Só queria vê-la mais uma vez.
- Jeff, você não existe. – disse incrédula.
- Porque não existo? Sou um babaca, não é? Mas não tem problema. – conformou-se.
- Não existe por ser diferente. Você não vê o quão é diferente dos outros?
- Eu sei que sou. Não queria ser. – queixou-se, por fim.
- Não se penalize por ser, não é um defeito. – e, bagunçando o cabelo escuro do menino, finalizou a conversa. – Só não quero te ver triste.

Os dois levantaram-se quase que instantaneamente. Ele ajudou-a a vestir o casaco, e foi pagar a conta. Ela aguardava do lado de fora, com um olhar distante, agora já sem vapor encobrindo as lentes dos óculos. Desajeitado, ainda tropeçou no próprio pé antes de sair do local. Abraçou o ombro da amiga e seguiram em direção ao carro. Adentraram o veículo e partiram em direção oposta ao olhar da garota durante a tarde.

Olhei para baixo, para minha torta e meu café, esfriando novamente. Pensei um pouco, se seguia meu caminho ou se esperava mais uma história que me fizesse pensar, que me tirasse um pouco a atenção. Olhei para o dia que já se despedira, as primeiras estrelas inaugurando aquele céu agora límpido. O mundo me aguardava do outro lado da porta. Levantei, ajeitei a boina no topo da cabeça, paguei por minhas distrações. Levantei a cabeça. Estava na hora de encarar a vida.

3 comentários:

  1. Por minutos, distrações nos fazem um enorme bem. Por vezes silenciam a dor, ou descobrem novos caminhos. A vida nos açoita, mas está lá fora à espreita. Aguarda pacientemente para nos derrubar. Muitos diriam se tratar de ilusão, mas dar uma pausa aos problemas é o que nos mantém sãos, concorda?

    Um beijo, até a próxima!

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  2. Verzola, seus contos são broinhas de fubá mimosa, que se derretem na boca. Continue!

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  3. Caramba, me deu um devajú nervoso ao ler seu texto.

    Tá de parabéns, a torta de maçã realmente deveria ser deliciosa para conseguir escrever algo tão bacana ;)

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