domingo, 25 de outubro de 2009

Cafés

Texto do escritor deslumbrante, do amigo fascinante, do psicólogo paciente. Carlos Pegurski é, por assim dizer, aquele que me decifra sem olhar-me aos olhos. E hoje, depois de tantos dias sem postar, fiquei por alguns instantes ouvindo "Abbey Road", decidindo então, atualizar com as palavras do adorado curitibano.

O café inaugura as minhas tardes. Um ritual, diariamente. Faça chuva ou falte sal, o descanso dos talheres após o almoço encerra uma curiosa sensação de ansiedade hedônica: a abstinência do café. Que nos toma. Uma aflição, uma ausência do bem-estar da cafeína, um buraco no meio da vontade, um centro em volta da atenção que só se dissipa com o seu cheiro messiânico.
Porque o café é todo aroma. Trabalho com uma moça cujo olfato sofre de uma disfunção lamentável: ele simplesmente não existe. E ela simplesmente não vê graça no café. Não sentir cheiro algum para ela tem lá suas vantagens - na área da enfermagem, vômitos, feridas e secreções são rotina -, mas perde-se aquela sensualidade sinestésica tão particular e a faculdade de manejar o tempo psicologicamente.
Porque o aroma é memória. Eu lembro até hoje do perfume da minha professora do jardindois, a tia Adriana. Um perfume doce, gostoso, maternal. O perfume dela. O aroma do feijão da casa da minha vó. O cheiro da cera que me aprisionava criança. Uma série de odores pueris. Eles guardam em sua fumaça a chave da memória. Basta surgirem que se faz mágica: as lembranças se descortinam maravilhosamente por entre sorrisos de canto de boca.
O café me parece o cheiro mais característico dessas fases tão sem-fim. Quando criança, não apreciava o café como hoje - o aroma do café era próprio do mundo adulto. E é essa sensação de exterioridade que ventila a personalidade que o mesmo aroma tem hoje. O mesmo nariz, em duas formas, se divide entre a saudade de um tempo distante (passado ontem) e a degustação do sabor fresco (passado agora).
Talvez por isso tão logo o almoço satisfaça eu corra atrás das memórias de sempre que o café me passa. Sacoado o corpo, reclama a mente. É hora então do café. Mas não da cafeína, apenas. É hora de sentir o calor dos outros cafés. É tempo de tempo completo.
Talvez por isso marcar um café com um amigo distante no tempo ou no espaço seja tão importante. Pelo amigo, mas pelo café. O café a uma chopada, a uma pizzada, a uma churrascada. Porque a fumaça do café nos transporta para dentro de nós mesmos com muita facilidade. O café é um signo mágico. É nosso. E talvez por isso um meio convite para um café retome toda distância.
Aliás, dia desses a Ana, uma amiga de anos que mora do outro lado do estado, falou em tomarmos um café. Respondi:
- Amanhã que horas?
Ela entendeu que o café era passado de brincadeira:
- Às dezesseis, antes da minha aula.
Mais um café que ficou marcado.


Por Carlos Pegurski

2 comentários:

  1. Maravilhoso artigo.
    O café e o seu aroma, aquele que já foi o "ouro negro do Paraná".
    Bjos e parabéns por ter colocado este artigo!

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  2. Sinto falta da cafeína no sangue. XD

    bejus

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