terça-feira, 14 de setembro de 2010

Um sonho, uma colcha de retalhos, um dia

É um sonho – disse-lhe de sobressalto – só poderia ser. Eis a visão do sonho, o vislumbre de meus dias, querendo esquecer o que tinha ali, cravado à terra roxa. A idade já ultrapassara as brincadeiras, embora os bilhetes infindáveis procedessem no decorrer das aulas. Assuntos inaptos para a discussão à frente da lousa. Era cansativo ter de frequentar a rotina. Passou-me pela cabeça que seria um bom nome de chiclete. Ro-ti-na. Doce no início e, com o tempo, vai perdendo o sabor. Quando se tenta livrar da forma errônea, acaba por grudar. Pegar no pé. Era realmente uma fuga daquilo tudo.

A oportunidade dos sonhos, quem sabe. Acionou o maçarico. Só sabia seu primeiro nome e nada mais me importava. Deixei de avisar a família, para evitar preocupações – afinal, a fuga era temporária. Começamos a subir. Atentei às pessoas que possivelmente teriam torcicolo se continuassem a olhar para o céu. Sorri de canto de boca. Eram pequenas agora. Não que eu fosse grande, mas a distância me confortou de maneira inexplicável. Separados pela altura, que mais haveria de ser?

Levantei os olhos, o piloto acendia um cigarro. Olhei para os lados, estávamos adentrando um agosto de muita seca. O clima se refletia na imagem mal formada da cidade, imponente e bem dividida. Posta como toalha de mesa, remendada nas combinações de quadras e blocos de edifícios. Ao longe, um lago – agora trancafiado, fazia bem alguns meses. Ouvi dizer que era para reforma. Libertaram os animais enjaulados, removeram os visitantes e este – ah! Ficou só. Cintilava, ao longe, a formação do sol irradiando a poeira que pairava no ar. Mal conseguia respirar, dado à umidade baixa, ao fogo que aquecia minha cabeça de minuto a minuto. Busquei não me importar. Era um sonho.

O cartão postal direcionava o olhar de qualquer cidadão, nascido nesta terra ou algum aventureiro. Embora no interior, ainda é a terceira maior cidade do Estado. Não deixava de ser: interior, repleto de pessoas com a cabeça pequena. Tal qual a cidade onde morei. Será que a visão seria assim? Algumas casinhas e, então, o verde inundaria. Voltei para o cesto que me carregava. Quando imaginei que flutuaria dentro de um cesto? O piloto acendeu outro cigarro – acredita que tem gente que se espanta? “Como assim você fuma dentro do balão?” – ri, ao olhar o que nos rodeava: quatro botijões de gás, combustível suficiente para manter nossos sonhos no alto. Ergui o queixo, o maçarico inflamava nossos rostos. Que mal haveria de fazer um cigarro? A cabeça encolhida não pertencia somente aos pés vermelhos. Não soube decifrar o incômodo em descobrir tal sina, mas continuei a apreciar a vista.

Os sonhos certamente estão no alto. Olhar para baixo é ter certeza de que o que ficou abaixo pertence a outra história. De um lado, a urbanização invadindo um espaço que, embora o olhar limitado da terra não identifique, ainda dominava. Enormes tapetes verdes rastejavam até o horizonte, delineado por tímidas elevações terrestres. Montanhas. E a imensidão azul-amarelada era só minha. O pôr-do-sol respingado por pontos coloridos no céu. Nas ruas, pequenas formiguinhas apontavam o sonho acima das cabeças.

Minha companhia de cesto avisou que era hora de descer. Recolhi meus pensamentos e guardei-os na bolsa, junto à cintura. Quicamos em um terreno desconhecido. Era uma plantação solitária, tal qual a lagoa do parque, não fora os visitantes inesperados. Entre pés de aveia e cavalos correndo - assustados com o barulho facilmente identificável - crianças tapavam a boca e soltavam gritinhos de alegria. Seria possível? Tão perto? Corriam ao encontro daqueles que desciam do céu.

- Dá medo? Como é lá em cima?
- De onde vocês são? – arrisquei.

O maior deles apontou para baixo, na direção que o fim do dia seguia. Um barraco montado no fundo de um vale anunciava a noite com a luz de fora já acesa.
- Nós seguimos vocês! Posso sentar aqui?
O piloto consentiu, ainda que desconfortável, a presença empoleirada de cinco garotos ao redor do cesto. Cinco formiguinhas lá do alto. Cinco persistências em seguir o sonho aqui de baixo. O sonho tão distante, que para a alegria dos irmãos, veio pousar no próprio quintal. Seis sonhos realizados por um dia.

Um comentário:

  1. Eu primeiro vi as fotos. Agora, lendo, fica clara a sua extrema sensibilidade para perceber cenários. 0/

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