quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Primeiro e único


Era fim de expediente quando passei no boteco da esquina tomar um café. Sentei defronte ao balcão e, apoiado com o cotovelo, segurava um pito na outra mão. Tragava com tanto prazer, que só um fim de tarde daquele me faria ter a sensação de dever cumprido. A semana toda foi corrida, os dias eram corridos e eu mal tinha tempo para pensar o quão contraditório era achar que a fumaça me faria um bem inexistente. Alívio. Fitei a rua movimentada, de tantos outros seres que foram libertos das correntes assalariáveis.
Tudo começara no jardim de infância, naquelas típicas atividades que teimam em transfigurar a criatividade infantil no papel. E foi bem na ocasião que fomos apresentados.
- Prazer, papel, lápis e borracha.
- Prazer, seu devoto até que os dias se apaguem...
Foi um momento que eu não esperava que ficasse guardado por tanto tempo na memória, mas felizmente ou infelizmente, hoje faz parte do meu ganha-pão, a tal da escrita. Não decifrava muito bem os sentimentos, embora o que eu sentisse fosse mais forte que minha vontade nula de querer parar. Eu não podia, não conseguia... Elas simplesmente surgiam na minha mente pedindo para que minhas mãos as parissem.
- Bem vindas ao meu mundo, Palavras.
E juntas formavam as mais belas frases. Quisera ter escrito aquilo. Era talento? Irreconhecível. Como é que identificaria? Não sabia se eram meus versos, embora tivessem tanto de mim. Nossa ligação era intensa demais para abandonar a prática por qualquer rancor. Eu estava realmente interessado em decifrar como surgira essa paixão, quando fui interrompido por uma garotinha.
- Moço, moço!
Fiquei calado, apenas encarando aqueles olhos esbugalhados. Percebi que as mãozinhas apoiadas no banco ao lado tremiam. Ajudei a frágil criaturazinha alcançar o balcão, era justo que ficássemos a uma altura semelhante, já que estava sentado. Apaguei o cigarro e voltei-me a ela, ansiando alguma reação.
- É ele mamãe, eu sei que é! – gritou a menina para a mãe, que tinha debaixo dos braços pães caseiros – possivelmente um auxílio à renda familiar. Tanto empenho para criar alimento, e eu pensando que me alimentaria de vocabulário para o resto da vida. Estranha a circunstância.
- Em que posso ajudar? – arrisquei. Que mal faria?
- Moço, me dá um autógrafo?
Incrédulo e envergonhado, fitei minha mão. Como era desengonçado! Quando levantei os olhos, percebi que ela empurrava um guardanapo em minha direção, acompanhado de uma caneta bic azul.
- Por favor, moço! Só um autógrafo!
Como é que me conhecia? Aposto que nem sabia ler. Mas resolvi optar pela saída mais fácil, antes que desapontasse a vontade da mocinha. Rabisquei meu nome, como se não me pertencesse. A caligrafia era minha, mas quem é que estava escrevendo?
- Obrigada moço! Muito obrigada! – foi a última coisa que disse antes de pular do banco e correr abraçada ao guardanapo amassado. Segurou na mão da genitora e saíram do recinto.
Qual a graça de guardar um pedaço de papel com o meu nome? Que diferença aquilo iria fazer na vida dela? E como me conhecia, a tal criança? Era impossível acreditar que a cena fosse real, não poderia ser.
- Que foi Beto? – perguntou o senhor, dono do estabelecimento, enquanto enxugava um copo.
- Ganhei uma fã. Minha primeira fã. – levantei e voltei para casa, caminhando e pensando no primeiro e único guardanapo que assinei.

Um comentário:

  1. Falando em estrutura textual e coerência ortográfica, teu texto está muito bem escrito, parabéns. A história que se propôs a contar, também. Sem muito o quê acontecer, apenas o fato de uma menininha pedir autógrafo para o escritor, que, naturalmente, se acha um merda – sentimento comum entre os escribas. E esse “sem muito o quê acontecer” é que muitas vezes fica esquecido na literatura de uma galera. Não é preciso cair um avião para se ter inspiração e transpiração suficientes para gerar um conto, uma crônica ou um romance. Esse conto que escreveu está tão bom que, se me falasse que é fragmento de um romance, acreditaria.

    Dentro em breve, quando tiver coragem de mexer no blog, vou linkar o teu lá também. Obrigado pela lembrança em teu blog de A Poltrona.

    Bjo.

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