quarta-feira, 5 de maio de 2010

"Tá pensando que isso é mercadoria?"

Para o juiz Costa, é impossível não se apegar à criança adotiva

Renê Pereira da Costa, 60, juiz da Vara da Infância e Juventude de Maringá, retrata os impasses no processo de adoção

Era início da semana, segunda-feira, dia 19 de abril, sob um céu “risonho e límpido”, que a entrevista tinha hora para começar: 13h30. Bastou entrar no Fórum de Maringá e questionar “Onde fica o gabinete do juiz Renê?”, que o caminho rapidamente foi indicado: “Segue reto, vira à direita e vira à direita de novo”.
O comando pareceu funcionar, afinal, naquele ambiente um tanto quanto escuro, com pessoas transitando de um lado para o outro, duas fileiras de bancos se encontravam diante da plaquinha acima da porta amarelada: “Juiz de Direito Infância e Juventude”. Não demorou muito para reconhecer o entrevistado chegando. A passos largos e um cumprimento de cabeça, Costa entrou no gabinete sem falar nada. Instantes depois o assessor aparece à porta, pedindo para entrar.

A ideia de antipatia que fizera anteriormente diluiu-se logo no primeiro contato pessoalmente: um aperto de mãos e uma sequência de perguntas com respostas bem embasadas. Renê Costa formou-se pela então Faculdade de Direito de Curitiba em 1973 e é responsável pela Vara da Infância e Juventude de Maringá desde 1997. Por trás da postura rígida e séria, esconde um passado de muito suor para estar onde está: foi apresentado ao trabalho logo cedo, com 8 anos colhia café e aos 10 pintava automóveis. Conciliou a origem humilde com os estudos. Mais do que correr atrás de oportunidades, o renomado juiz construiu a própria oportunidade.

Como lidar com a situação quando não existe adaptação da criança à família adotiva?
É um costume meu de fazer: quando alguém vem adotar uma criança, de zero a 1, muitos casais, principalmente os jovens, pensam que a adoção é só alegria e não é. Porque a criança chora, tem dor de barriga, dor de ouvido, tem uma série de dificuldades. O que acontece: não existe uma adaptação. Colocamos um período em torno de seis meses de observação, em que o casal, entre o pedido de adoção e a guarda provisória que concedemos, convive com a criança para ver se é realmente isso que eles pretendem.

A maioria das pessoas prefere adotar bebês. A preferência é por conta da adaptação ou tem outro motivo?
A maioria prefere bebê, de preferência de um mês de idade, justamente para adaptação e a educação adequada, porque é a criação que vai resolver. Uma criança com 5, 6 anos, já tem alguns costumes. No café da manhã, se a criança prefere café ou chá, é um costume. São manias adquiridas com o tempo, que pegam sem saber. Agora, se pega um recém-nascido, vai moldá-lo de acordo com a família, com os costumes, de ir à igreja ou não ir à igreja, ter uma vida farta ou não, ter café da manhã. Enfim, os costumes básicos que fazem a diferença. Quando você pega uma criança para doutrinar, ela adere a todos os costumes, entra no que você gosta.

É aconselhável o casal falar para a criança que ela é adotada?
Tem de falar. Entre os 5 e 8 anos de idade, é preciso conversar e explicar que é filho do coração. Quanto menos criticar a mãe biológica, melhor. Falar que ela abandonou não traz benefício nenhum para a criança, nem para a convivência. É prejudicial. É evidente que lá na frente [a criança] vai conseguir descobrir e acaba complicando. Se falar que é filho do coração, ela acaba entendendo. O importante na adoção é que damos um encaminhamento da criança para um casal. Às vezes a criança leva sorte, nasceu pobre, e acaba em uma família rica.

E quando o casal se interessa em adotar a criança e a família biológica quer a criança de volta?
Não tem como reverter, porque antes da adoção a mãe ou os pais chegam aqui e declaram que não têm interesse nem psicológico, nem financeiro e realmente não querem a criança, querem desistir do pátrio poder ou, então, a Justiça, o Ministério Público, entra com uma ação de destituição do pátrio poder. Destituindo, o poder fica disponível para a Justiça, e não tem como os pais irem procurar a criança. Primeiro porque não sabem com quem está, ocorre em segredo da Justiça, troca de nome, de registro, desaparece.

Caso a criança adotada queira conhecer os pais biológicos, pode?
Só se os pais adotivos falarem, a Justiça jamais vai dizer. Eles podem deixar conhecer, mas pai é quem cria. Não existe na cabeça de uma criança que foi criada por um casal, depois de 15 ou 20 anos, falar que quer voltar para os pais biológicos. Os outros pais são estranhos à relação dela, não vai conseguir colocar na cabeça que vai voltar. Visitar é até normal. Se os pais adotivos pedem para visitar, a gente pode abrir o registro. Isso acontece por curiosidade, para conhecer. Se tiver uma razão, “olha, eles abandonaram você”, é pior ainda, não pode abrir. Mas tem gente que entrega o filho e sai chorando. Muitas adoções são de moças que vêm de outros Estados, chegam aqui e ficam grávidas, não podem chegar de barriga para o pai, então ficam até ganhar o bebê e entregam para a adoção.

Como funciona o processo em casos de adoção por casais homossexuais?
Se o casal vive bem, você entrega, mas a primeira coisa no processo de adoção se chama habilitação, que é o momento em que você chega aqui com os documentos pessoais, endereço, a ficha geral e inclusive empregatícia. Vamos analisar a idade. Por exemplo, como vou entregar uma criança para alguém com 55 anos? A hora que a criança precisa dele, a pessoa não tem condições de educá-la, pelo menos da maneira que deveria ser, de correr atrás e ser participativo. O juiz tem de analisar todos esses aspectos objetivos e subjetivos da lei, para que, se indeferir o pedido, ele possa agravar ou recorrer. Mas é um direito do juiz de reprovar, não é o normal da Justiça liberar. Basta indeferir a habilitação, porque, se não tiver, não pode adotar.

Há crianças que vão e voltam várias vezes para adoção. Não fica a impressão de que elas fazem parte de um comércio?
Eu já falo assim, "Você tá pensando que isso aqui é mercadoria?". A pessoa chega aqui, pega, olha, usa e depois devolve? Eu “boto pra quebrar!”. Teve um caso de uma criança que estava com o casal havia uns três ou quatro anos. Depois eles resolveram que não queriam mais e a criança começou a sofrer. Decretei a prisão dos dois e falei que eles ficariam presos enquanto a criança estivesse chorando. Enquanto ela não estiver bem, em condições normais, vocês ficam detidos, “Ah, mas e a arbitrariedade?”. Faz um habeas-corpus e manda para o tribunal. “Procura teus recursos, porque o senhor está preso”. Prendi os dois, até que a criança se adaptou direitinho. Mas enquanto ela estava sofrendo, eles também estavam. Tem hora que você tem de jogar duro, porque ninguém é obrigado [a adotar]. Você faz o cadastro se quiser, pega a criança se quiser. Agora, pegou tem de ter responsabilidade para criar da melhor maneira possível, ter o mesmo amor que você tem a um filho. Até para um gato, um cachorro você tem amor e em uma criança que você pega ali, recém-nascida, fica acompanhando, não é possível que não adquira amor de pai, de criá-la, educá-la e querer um bom futuro para ela.
Eu tenho um sonho, no passado, uns oito anos atrás, tentei em Maringá, não um processo de adoção, mas eu queria casais para pegar crianças no abrigo, escolher uma criança, sem precisar levar pra casa, só acompanhá-la, dar uniforme escolar, acompanhar na escola, ver como está o desenvolvimento, se precisar de médico, dar um plano de saúde, fazer um acompanhamento até uns 16, 18 anos de idade, para ser um cidadão. Na época eu fiz uma campanha na mídia, TV, rádio, jornais e consegui um casal. Um! Ninguém quer saber. A grande verdade funciona da seguinte maneira: o que está sobrando para mim, está faltando para alguém. Deus não fez as coisas assim, Deus fez todo mundo igual. Eu posso ter mais que você, porque eu já estudei, tenho mais idade, tenho um pouco mais. Não posso ter além disso. Todos têm que ter comida, remédio para dor, uma escola para estudar. Tem que ter as mesmas condições, todo mundo tem direito.
As pessoas não se preocupam, de maneira nenhuma, com os semelhantes. Um casal que tem um filho, dois filhos e perde o emprego, por exemplo. Ele tem que comer, a mulher tem que comer, mas antes, as crianças têm que comer. Ele às vezes comete um furto, entra para a criminalidade, para cobrir uma situação que na realidade cabe ao Estado, ao Município, à sociedade. Supri-la! E não é isso que acontece, tem gente que passa dificuldade.

Como anda o processo de adoção de crianças em Maringá?
Para o processo de adoção, existe um livro para as pessoas interessadas, eu falo pessoas porque não há necessidade de ser casal, são pessoas. Também é um livro de crianças disponíveis para adoção. Hoje nós temos mais ou menos na lista de espera em torno de 120 pessoas e crianças disponíveis para adoção: nenhuma.
Fazemos por ano em Maringá em torno de 10 a 12 adoções e a demanda está em torno de 120. Se as coisas caminharem do jeito que está, as pessoas que estão no final vão demorar de oito a dez anos para a adotarem.

Com a nova lei, o senhor acha que vai facilitar o processo de adoção?
Facilita porque fica no cadastro nacional e as pessoas têm de escolher onde querem se cadastrar. Se a pessoa se cadastrou em Maringá, não pode se cadastrar em Sarandi, em Manaus, São Paulo, então é um cadastro só, porque se sair daqui e for se cadastrar em outro lugar vai bater com a lista de existência. Então veio facilitar justamente por isso, antes, as pessoas para agilizarem o processo, faziam cadastro em pelo menos dez comarcas, então muita gente ficava impossibilitada de fazer adoção. Uma criança daqui saía para São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul. Hoje as crianças de Maringá ficam em Maringá, porque os cadastrados são daqui, 80% residem na comarca. Nesse sentido, o cadastro nacional foi importante, porque eu não posso de maneira nenhuma suprimir alguém. Quando você tem uma criança disponível e entra no cadastro nacional, da comarca, a classificação sai na hora. Na lista dos 20 primeiros, você pega o primeiro e vê se ele tem interesse, se não tiver, vai para o segundo. Não tem perigo nenhum da pessoa se preocupar de que alguém vai passar na frente.

E quando existe caso de casais estrangeiros que querem adotar uma criança brasileira?
A adoção de casais estrangeiros existe na comarca há mais de 11 anos e eu nunca vi nenhum, não tem. A adoção internacional de uns 15 anos para cá acabou, porque hoje tem um conselho que se chama CEA (Conselho Estadual de Adoção), que é no tribunal, onde é composto pelo presidente do tribunal, vice-presidente, alguns juízes e promotores, psicólogos, psiquiatras e pedagogos. Esse grupo faz uma análise, e hoje para liberar alguém para a adoção internacional, tem que consultar todas as comarcas, se não tem ninguém nacional interessado. Se tiver, a prioridade é nacional. Por essa razão que a adoção internacional ficou sem condições no Brasil.

Alguns casais brasileiros se interessaram em adotar as crianças do Haiti, e a Unicef tem uma postura que só libera em último caso. Essa é uma postura correta?
Nem todas essas crianças estavam disponíveis para adoção. Estavam em dificuldades de sobrevivência. Alguns os pais morreram, mas outras os pais não morreram: estavam em dificuldade financeira, de sustento. Eu acho, por exemplo, que a posição seria diferente, como trazer essas crianças aqui e colocar nos abrigos que existem. Aqui em Maringá existe um monte de abrigos, e faltam crianças para abrigar. Nós temos espaço, como tem espaço em todas as comarcas do estado e do Brasil. Então o assessoramento para o Haiti é no sentido de colocar essas crianças aqui, não para uma adoção. Se pudesse, iria para a adoção aqueles que realmente estão disponíveis, sem os pais biológicos ou algum parente que possa cuidar, porque primeiramente no processo de adoção, procura-se deixar a criança no vínculo familiar. Se os pais que não têm condições e simplesmente querem deixar a criança, mas um tio ou os avós querem criar, é obrigado a deixar dentro da família. Por isso tem três modalidades de colocação de família substituta: a guarda, tutela e a adoção, que é a última delas, porque tem que procurar sempre colocar no seio familiar.

Geralmente quem adota é quem não tem filhos ou têm casais com filhos que também adotam?
Devido ao pequeno número de crianças para adoção, nós só entregamos para casais sem filhos, porque não é possível que a pessoa já tenha filhos e tenha preferência na adoção. Então pulamos e entregamos a criança para as pessoas ou o casal que não tem filhos.

Qual a relação dos lares da cidade com crianças em adoção?
As crianças que ficam ali são pouco diferentes das crianças do Haiti. São crianças que os pais são desajustados, usuários de drogas, desempregados e não tem familiares aqui para poder colocá-los em uma família substituta da própria família. Então retiramos as crianças e colocamos nesses lares aguardando um tempo, um mês, um ano, dois anos, até que você verifique se aquele casal está trabalhando, se ajustando e fazendo tudo aquilo que nós mandamos, visando o retorno à sociedade. Nós ficamos aguardando para devolver a criança. Porque se for retirar todas as crianças dos pais que ganham pouco, não tem uma boa alimentação e não vive tão bem, lota um salão grande. O objetivo do estado, da família e da sociedade é manter esses locais, porque muitas mães passam dificuldades porque querem. Ficam desempregadas, só o pai que trabalha e não ganha nem um salário mínimo para alimentação. Como vai fazer com as crianças? Têm dificuldades, passam fome e acabam indo para as ruas pedir. É de onde nós retiramos e colocamos nesses lares, aguardando as consequências. Chama-se pedido de providência: ficamos acompanhando. Quando se vê que não existe nenhuma possibilidade de retorno à família, entramos com uma ação de destituição de quarto poder, aí colocamos em adoção.

Casos em que as crianças são irmãs, pode um casal adotar uma e outro casal adotar a outra?
Não adota. Procuramos fazer da seguinte forma: leva os dois ou não leva nenhuma. Se adotou uma criança com a gente e essa mãe biológica tiver outro filho dali um tempo e correr aqui pela vara, nós colocamos no mesmo casal. Porque pode casar irmão com irmão. A gente mantém o nosso cadastro que só o juiz pode abrir. No caso de doenças que só a família pode salvar, aí pode abrir o cadastro.

Saiu no JM (Jornal de Maringá), no dia 04/12 do ano passado, que a maioria tem uma predileção por bebês da cor branca.
Na hora que faz o cadastro, eu exijo pelo menos duas ou três fotografias do casal, da pessoa. Você procura chegar perto. Por quê? Justamente pelas sequelas. Por que você vai colocar um nissei em um casal que não é? Ou um moreninho em um casal de polacos? Procuro colocar dentro por causa da questão de adaptação. Ele vai ao colégio e ninguém entende. Pô, pera um pouquinho! Tua mãe é branca, teu pai também, e você é moreno? As crianças não sabem lidar, então para evitar isso, saem os primeiros vinte nomes, e a gente enquadra.

Quais são os critérios avaliados na lista de adoção?
Tem que estar inscrito, e a data que você entrou está lá, esse é o critério. O primeiro da lista tem prioridade. Mesmo que as características físicas não baterem, tem que consultar. O casal escolhe se vai esperar ou vai adotar a criança. Mas eu preciso consultar a ordem, não posso dar a criança para o terceiro da lista, sem falar com o primeiro e o segundo. Por isso o cadastro nacional foi importante, porque é um parâmetro para o juiz, para não ter confusão.
Há uns dois meses atrás, teve confusão quando o conselho tutelar entregou uma criança direto para uma família, e foi feito busca e apreensão da criança. Ela foi encaminhada para o primeiro da lista. Não tem problema nenhum. O primeiro da lista tem direito.

Em caso de adoção ilegal. Tem como descobrir? Se descobre, o que acontece?
Busca e apreensão. Tira a criança! Já tiramos um monte. As pessoas deduram. A própria vizinha já fala "Olha, a mulher não tava nem grávida, e já apareceu com uma criança aqui", então já mandamos o conselho tutelar. Entregar direto pro casal, eu até acredito que tenha, mas a pessoa registrar como se fosse filho dele é um perigo. É crime. Você pode retirar a criança dele, então, é arriscado. Não tem necessidade. Faz um cadastro aqui e espera, que vai acontecer.

2 comentários:

  1. Rene é 10! pensou até em sair candidato a prefeito pelo meu partido..

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  2. MUITO BOM JUIZ, MUITO INTELIGENTE, POR ISSO É DEUS GUIOU E FEZ UM JUIZ.

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