sábado, 19 de maio de 2012

Hoje eu conheci o Paulo


Hoje eu conheci o Paulo. O Paulo que não fala sobrenome, que faz caretas para responder e que demonstra bastante timidez ao falar. A tal insegurança é posta de lado quando alguém cruza seu caminho, todos os dias.

- Tia, me dá uma moedinha? – ele entoa, com a cara de menino que tem. A resposta muitas vezes ele já sabe.

São treze anos, com cara de mais novo e as mãos ásperas dos mais velhos. Paulo trocou o futebol com os amigos depois da aula pelas aventuras que o centro da cidade grande lhe proporciona. Ele jura de pés juntos que vai para a escola. Pela manhã. E que, ao meio dia, todos os dias, trota para Maringá com um amigo inseparável: Lazão. Um pangaré que tem de carregar o dobro do peso no lombo. Tão mirrado quanto o dono. Pergunto há quanto tempo ele tem Lazão. Instintivamente ele coloca o indicador sujo no queixo, as unhas roídas, olha para a aba do boné como quem faz pose para pensar. Cinco anos. Se ele gosta do bicho?

- Estou procurando comida para ele – logo avisa.

Revira o lixo quase de pernas para o alto. E logo a timidez anuncia que voltou. A comida não é só para o Lazão, nós dois sabíamos. Mas quem duvidaria de olhar tão profundo do menino que aos treze tinha porte de oito e responsabilidade de trinta? É impossível ignorar os olhos ávidos e curiosos de Paulo. Cor de pôr-do-sol que ele dificilmente acompanha se está preso ao trânsito da cidade. Mas que não deixam lhe escapar nada ao redor.

Ninguém bota medo na dupla que vem de Sarandi para Maringá todas as tardes. Andar pela cidade para ele não é desafio, é diversão. Aventurar-se pelas latas de lixo não é capricho do destino. Passar fome não é opção. Paulo é uma afronta para todos aqueles que torcem o nariz para os tantos Paulos da cidade. Que igualmente dizem buscar alimento para o cavalo. E o cavalo materializa-se em família – pai, mãe, irmãos. E os Paulos são cada vez mais novos, e cada vez mais ousados ao lançar-se sem medo de olhar para trás. Porque não há muito que deixar pelo caminho.

Lançar migalhas de pão como João e Maria não é um luxo desses meninos que tão cedo tem de se contentar com as migalhas dos outros. Pão seco é um prato cheio. Paulo não é acostumado a muita atenção - dádiva que os invisíveis não esperam de quem não os enxerga. Ou fazem questão de não fazê-lo. É até constrangedor para o dono de Lazão perceber que todos que passam na rua o observam.

É assustador para quem não tem medo da cidade. E só o encaram esperando o que se espera dos que habitam as ruas. O que estão fazendo, abordando quem habita um mundo diferente do seu? Eu não tenho Lazão, apesar de gostar do bicho. Não tenho a mesma coragem de Paulo de olhar nos olhos dos que são cegos. Não tenho peito o suficiente para o que aos treze é rotina para ele. Que não anda sozinho. Anda com o irmão, mais velho. Ressabiado. Desconfiado dos outros que eram para ser iguais. E não o são. Porque o tratamento, ele sabe, os olhos caídos dizem, é bem diferenciado.

Pergunto se Paulo ganhou chocolate na Páscoa. Ele faz pose de pensador novamente e balança a cabeça positivamente. Mesmo assim, ofereço-lhe um bombom, que ele aceita de prontidão e guarda-o no bolso da bermuda surrada. Observo como é ágil ao encontrar o que presta ou não dentro do lixo – onde, para os outros, nada mais presta. O garoto diz que há um ano está nas caçambas da vida. E não reclama. Atenta-se às calçadas, aos olhares que o acusam de ter nascido Paulo. Arregaça as mangas da blusa de frio – em pleno calor – e brada, sem medo:

- Tio, me dá uma moedinha?

terça-feira, 1 de maio de 2012

Caixa de arrependimentos



Toda vez que eu reabro minha caixa de memórias, sinto externar um sentimento amargo de dívida com o passado. Repasso os dedos cuidadosamente em cada envelope endereçado à pessoa que fui, prendo a respiração ao ver que as datas já estão distantes o suficiente para emergirem no breu do esquecimento. Engraçado perceber uma luz sempre irradiando lá de dentro, do fundo – da alma? – bradando por um ponto final.

Nunca gostei muito de chegar ao final. A verdadeira aventura está em percorrer o caminho... Pelo menos costumava ser assim. Já se passou tanto tempo? Preferia deixar a última página das minhas histórias descompassadas. Cansei de escrever livros em branco. Eu acredito em fases, entende? Boas e ruins. Depois de tantas maremotos, não esperava perder todos meus contos, meus personagens. Que nem eram meus.

Egoísta ao não compartilhar o desfecho de tudo. E hoje o enredo cobra um final – feliz? – e atormenta-me com os temíveis “e se?”. Reviver histórias tão antigas hoje não é uma opção. Nenhum dos integrantes atuaria novamente no mesmo cenário. Busco o quê? Voltar a ser o que era? Deixar tudo como está? Ou abro o livro do destino e começo... Bem... De onde começo? Do fim? Faço o inverso. Compreendo o início, faço do ponto de partida o meu próprio encerramento.